Tipologias de Fraudes Financeiras II: “Proteção Veicular”

A fraude financeira montada ao redor de contratos de “proteção veicular” ocorre no âmbito do mercado de seguros privados do Sistema Financeiro Nacional e consiste no oferecimento ao público em geral de um negócio jurídico enganoso, com características de contrato de seguro, por empresas que não são sociedades seguradoras.

Essa “proteção veicular” consubstancia, além de concorrência desleal em relação ao mercado oficial de seguros, cenário de potencial dano aos consumidores, uma vez os contratos não estão regulamentados e as empresas não se submetem ao rígido padrão de controle e fiscalização pelo Poder Público (1).

Mercado de Seguros Privados

No Brasil, o Sistema Financeiro Nacional – SFN está previsto no art. 192 da Constituição da República e se estrutura ao redor do:

  • Mercado de crédito: operado, principalmente, por bancos comerciais e financeiras em operações de crédito a curto, médio ou longo prazo, crédito ao consumidor, crédito habitacional e arrendamento mercantil (leasing);
  • Mercado de capitais: onde os principais títulos negociados são representativos de capital de empresas (ações) ou de empréstimos feitos via mercado por empresas (debêntures conversíveis, bônus de subscrição etc.), por intermédio de instituições financeiras não bancárias, como as bolsas de valores;
  • Mercado cambial: relacionado à compra e venda de moeda estrangeira;
  • Mercado de seguros privados: englobando seguros privados, contratos de capitalização e previdência complementar aberta; e
  • Mercado de previdência fechada: com os planos de previdência complementar (fundos de pensão).

Cada um desses mercados possui órgãos normativos e fiscalizatórios. São normativos o Conselho Monetário Nacional – CMN para os mercados de crédito, câmbio e valores mobiliários (art. 4º, Lei n. 4.595/64 e Lei n. 6.385/76); o Conselho Nacional de Seguros Privados – CNSP para o mercado de seguros privados e previdência aberta (art. 32 do Decreto-Lei n. 73/66) e para os planos de previdência aberta (LC n. 109/01); e o Conselho Nacional de Previdência Complementar – CNPC para o mercado de previdência complementar, operado por entidades fechadas de previdência complementar (fundos de pensão) (art. 5º, LC n. 109/01 e art. 13, Lei n. 12.154/09).

As normas expedidas pelos órgãos normativos têm sua aplicabilidade supervisionada pelas seguintes autarquias federais: Banco Central do Brasil – BACEN (crédito e câmbio); Comissão de Valores Mobiliários – CVM (capitais); Superintendência de Seguros Privados – SUSEP (seguros privados, capitalização e previdência complementar aberta); e Superintendência Nacional de Previdência Complementar – PREVIC (previdência complementar fechada) (2).

Os contratos de seguro no Brasil estão regulados, em termos gerais, no Código Civil (arts. 757 a 802) e no Decreto-Lei 73/66. Modalidades especiais de seguro estão disciplinadas em leis especiais, tais como o seguro de assistência à saúde (Lei 9.656/98) e o seguro obrigatório de danos por embarcações (Lei 8.374/91).

Pelo contrato de seguro, o segurador se obriga, mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse legítimo do segurado, relativo a pessoa ou coisa, contra riscos predeterminados (art. 757, CC). O Decreto-Lei n. 73/66 se propõe a disciplinar os contratos de seguro de coisas, pessoas, bens, responsabilidades, obrigações, direitos e garantias (art. 3º).

É objeto do contrato de seguro, pois, algum interesse segurável, configurado como bem (seguro de dano, art. 778 e ss., CC) ou pessoa (seguro de pessoa, art. 789 e ss., CC). Busca-se proteger o interesse segurável de acontecimento futuro e incerto previsto na apólice ou bilhete de seguro (risco predeterminado, art. 760, CC). Se o risco ocorrer, diz-se que ocorreu o sinistro.

Somente pode ser segurador a entidade para tal fim autorizada (art. 757, parágrafo único, CC). Justamente para regulamentar as atividades do segurador, no interesse dos segurados e beneficiários, o Decreto-Lei n. 73/66 criou o Sistema Nacional de Seguros Privados composto por órgão normatizador do mercado (CNSP), órgão fiscalizador (SUSEP) e resseguradores, sociedades seguradoras e corretores habilitados (art. 8º).

O papel de segurador é desempenhado no Sistema Nacional de Seguros Privados por sociedades seguradoras, empresas constituídas sob a forma de sociedade anônima (art. 72, parágrafo único, Decreto-Lei n. 73/66) que não podem explorar nenhum outro ramo do comércio ou da indústria (art. 73). Além do mais, sociedades seguradoras só poderão operar em seguros para os quais tenham autorização, segundo planos, tarifas e normas aprovadas pelo CNSP (art. 78). A autorização para funcionamento das sociedades seguradoras depende de autorização do Ministro de Estado, após apreciação do CNSP e da SUSEP (art. 74 a 77).

Proteção Veicular”

A “proteção veicular” é um serviço oferecido ao público em geral por empresas que comercializam produtos falsamente caracterizados como seguro. Tais empresas não se submetem às regras do CNSP, não são fiscalizadas pela SUSEP, não têm garantia de estrutura financeira para honrar com seus compromissos e foram demandadas em centenas de ações civis públicas movidas pela SUSEP desde 2015 (3).

As empresas que atuam no setor procuram disfarçar a fraude financeira sob argumento de que são associações criadas sob a liberdade contratual do direito civil. Na III Jornada de Direito Civil da Justiça Federal foi aprovado o Enunciado n. 185 (4) que prevê:

Art. 757: A disciplina dos seguros do Código Civil e as normas da previdência privada que impõem a contratação exclusivamente por meio de entidades legalmente autorizadas não impedem a formação de grupos restritos de ajuda mútua, caracterizados pela autogestão.

O que ocorre na prática é que os contratos de “proteção veicular” não ocorrem em “grupos restritos de ajuda mútua, caracterizados pela autogestão” e se configuram como típicos contratos de seguro, oferecidos a um grupo indiscriminado e indistinto de interessados, com ampla divulgação em redes sociais e na mídia.

O caráter amplo se revela na constatação de que são contratos de adesão para os quais bastam que o interessado procure a sede da empresa e apresente cópia da Carteira Nacional de Habilitação (CNH), do Certificado de Registro e Licenciamento de Veículo (CRLV) e de comprovante de residência. Após, a empresa realiza uma vistoria no veículo e firma o contrato.

Caso tal já foi decidido pelo Superior Tribunal de Justiça:

9. O Enunciado n. 185 da III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, no que concerne à interpretação atribuída ao art. 757 do Código Civil/2002, assenta que “a disciplina dos seguros do Código Civil e as normas da previdência privada que impõem a contratação exclusivamente por meio de entidades legalmente autorizadas não impedem a formação de grupos restritos de ajuda mútua, caracterizados pela autogestão”. 10. A questão desta demanda é que, pela própria descrição contida no aresto impugnado, verifica-se que a recorrida não pode se qualificar como “grupo restrito de ajuda mútua”, dadas as características de típico contrato de seguro, além de que o serviço intitulado de “proteção automotiva” é aberto a um grupo indiscriminado e indistinto de interessados, o que resulta em violação do dispositivo do art. 757 do Código Civil/2002, bem como dos arts. 24, 78 e 113 do Decreto-Lei n. 73/1966. 11. Aliás, tanto se trata de atividade que não encontra amparo na legislação atualmente vigente que a própria parte recorrida fez acostar aos autos diversos informes a título de projetos de lei que estariam tramitando no Poder Legislativo, a fim de alterar o art. 53 do Código Civil/2002, para permitir a atividade questionada neste feito. Ora, tratasse de ponto consolidado na legislação pátria, não haveria necessidade de qualquer alteração legislativa, a demonstrar que o produto veiculado e oferecido pela recorrida, por se constituir em atividade securitária, não possui amparo na liberdade associativa em geral e depende da intervenção reguladora a ser exercida pela recorrente. 12. Não se está afirmando que a requerida não possa se constituir em “grupo restrito de ajuda mútua”, mas tal somente pode ocorrer se a parte se constituir em conformidade com o disposto no Decreto-Lei n. 2.063/1940 e legislação correlata, obedecidas às restrições que constam de tal diploma legal e nos termos estritos do Enunciado n. 185 da III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal. 13. Recurso especial interposto pela Confederação Nacional das Empresas de Seguros Gerais, Previdência Privada e Vida, Saúde Suplementar e Capitalização – CNSEG prejudicado. Recurso especial interposto pela Superintendência de Seguros Privados – SUSEP conhecido e provido (REsp n. 1.616.359/RJ, relator Ministro Og Fernandes, Segunda Turma, julgado em 21/6/2018, DJe de 27/6/2018).

Em acréscimo, as empresas de “’proteção veicular” não possuem, em regra, nenhum fundo de garantia ou reservas, revelando modos temerários na condução dos negócios.

Esse fundo deveria ser bastante para fazer face às perdas cobertas dos clientes. Não existindo tal fundo, as despesas com sinistros podem ser maiores que a arrecadação e faltar recursos para saldar as obrigações assumidas. Sem o fundo de reserva, os clientes podem ser chamados para colocar mais dinheiro, além das contribuições já aportadas. Se eles não quiserem ou não puderem realizar novas contribuições, o resultado é invariavelmente a ruína e o fechamento da entidade.

Por outro lado, se a empresa de “proteção veicular” depende da receita ou da entrada de novos associados para pagar os valores dos sinistros, então não se tem um modelo de negócio diferente de uma pirâmide financeira.

As reservas técnicas das entidades legalizadas do mercado financeiro são fiscalizadas pela SUSEP e seu investimento rigidamente disciplinado por resolução do Conselho Monetário Nacional.

São várias os tipos de provisões técnicas a serem constituídas por uma empresa seguradora. De acordo com a SUSEP (5), as sociedades seguradoras e entidades abertas de previdência complementar devem constituir as seguintes provisões técnicas, quando necessárias: Provisão de Prêmios Não Ganhos (PPNG); Provisão de Sinistros a Liquidar (PSL); Provisão de Sinistros Ocorridos e Não Avisados (IBNR); Provisão Matemática de Benefícios a Conceder (PMBAC); Provisão Matemática de Benefícios Concedidos (PMBC); Provisão Complementar de Cobertura (PCC); Provisão de Despesas Relacionadas (PDR); Provisão de Excedentes Técnicos (PET); Provisão de Excedentes Financeiros (PEF); Provisão de Resgates e Outros Valores a Regularizar (PVR); e Outras Provisões Técnicas (OPT).

O investimento dessas provisões técnicas também é rigidamente controlado. Até março de 2022, a Resolução CMN n. 4.444/15 disciplinava a aplicação dos recursos das reservas técnicas, das provisões e dos fundos das sociedades seguradoras. Em março de 2022, a norma foi substituída pela Resolução CMN n. 4.993, determinando que, na aplicação dos recursos, as sociedades seguradoras devem observar os princípios de segurança, rentabilidade, solvência, liquidez, diversificação, adequação à natureza de suas obrigações e transparência; exercer suas atividades com boa fé, lealdade e diligência; zelar por elevados padrões éticos; adotar práticas que visem garantir o cumprimento de suas obrigações, considerando, inclusive, a política de investimentos estabelecida, observadas as modalidades, segmentos, limites e demais critérios e requisitos estabelecidos neste Regulamento; e observar, sempre que possível, os aspectos relacionados à sustentabilidade econômica, ambiental, social e de governança dos investimentos (art. 2º).

Sociedades seguradoras simplesmente não podem atuar sem reservas técnicas, é uma segurança para o mercado e para os segurados. A ausência dessas reservas, normalmente, ocorrem em conjunto com a supressão do controle sobre os administradores por meio da inviabilização da “assembleia geral dos associados”.

As empresas de “proteção veicular” também não costumam manter uma contabilidade tão fidedigna quando as empresas que operam no mercado de seguros privados. A SUSEP possui um Manual de Práticas e Procedimentos Contábeis do Mercado Segurador (6), destacando as seguintes informações a serem prestadas: ocorrência, aviso e pagamento de sinistros; salvados e ressarcidos, transferência de carteira, valor recuperável de ativos.

Propaganda Enganosa

Para captação de seus clientes indistintamente entre o público em geral, as empresas de “proteção veicular” normalmente realizam ampla divulgação de seus serviços em mídias sociais e na internet, apelando para terminologias próprias de contrato de seguro, induzindo os clientes a erro.

Nas postagens há, normalmente, referência à empresa como “seguradora” que cobre “sinistros”, quando a empresa não chama seus serviços claramente de “seguro”. As empresas também alardeiam a existência de “planos de cobertura”, com terminologias semelhantes aos prêmios do seguro, cobrindo os seguintes “sinistros”: roubo/furto; colisões; para-brisas e vidros; faróis, lanternas e retrovisores; perda total; coberturas de terceiros; e incêndios. Além do mais, os planos envolvem rastreamento veicular 24h, serviços de chaveiro 24h, hospedagem para emergências, serviço de reboque; assessoria jurídica e carro reserva.

O emprego de terminologia similar ao dos contratos de seguro, induz e mantém em erro os investidores, sonegando informações sobre a operação financeira real (contrato de seguro) e prestado informações falsas, descrevendo as operações como “proteção veicular”.

Na fraude financeira, não há menção ao fato de que “proteção veicular” não é contrato de seguro e que a atividade não é regulamentada por lei ou fiscalizada pela SUSEP. Nenhum deses esclarecimentos, tampouco, consta dos contratos firmados os consumidores, de apresentação comercial disponível em site ou de eventual regulamento interno. Pelo contrário, a propaganda é no sentido de se aproximar do contrato de seguro, captando clientes com informações falsas.

Crimes

As condutas descritas podem, a depender do caso concreto, se enquadrar no art. 16 da Lei n. 7.492/86: operar, sem a autorização da Superintendência de Seguros Privados – SUSEP, instituição financeira equiparada (art. 1º, parágrafo único, inciso I) do mercado de seguros privados.

Ademais, ao atuarem sem a constituição de reservas, os agentes podem praticar o fato típico previsto no art. 4º, parágrafo único, da Lei n. 7.492/86, gerindo de forma temerária a instituição financeira equiparada (art. 1º, parágrafo único, inciso I) do mercado de seguros privados.

Ao induziram e manterem em erro os investidores, sonegando informações sobre a operação financeira real (contrato de seguro) e prestado informações falsas, descrevendo as operações como “proteção veicular”, os agentes podem incorrer no art. 6º da Lei n. 7.492/86. De igual modo, ao exigiram dos clientes, em desacordo com a legislação, remuneração sobre operação de seguro, incorrem no art. 8º da Lei n. 7.492/86 (7).

A depender do caso e com o necessário aprofundamento das investigações, pode-se configurar os crimes de gestão fraudulenta de instituição financeira (art. 4º, Lei n. 7.492/86), inserção de dados falsificados em demonstrativo contábil (art. 10, Lei n. 7.492/86), lavagem de dinheiro (art. 1º, Lei n. 9.613/98) e organização criminosa (art. 2º, Lei n. 12.850/13) (8).

  1. ReeNec 00169654720124036100, DESEMBARGADORA FEDERAL DIVA MALERBI, TRF3, SEXTA TURMA, 15/06/2018;
  2. https://investigacaofinanceira.com.br/mercados-financeiros-i/;
  3. Dados da Confederação Nacional das Seguradoras – Cnseg, constantes em: https://www.seguroautosim.com.br/ [acesso em 18 de maio de 2023]. O contexto histórico sobre o surgimento dessas associações consta de cartilha da Confederação Nacional das Seguradoras: https://issuu.com/confederacaocnseg/docs/1._cartilha_protecao_veicular_digital__aberto_?fr=sYTMzOTM2MTg4ODY [acesso em 18 de maio de 2023]. Há, inclusive, precedente do TRF da 5ª Região, em caso da Paraíba, proferido na AC 00052895320124058200, Desembargador Federal Luís Praxedes Vieira da Silva, TRF5, Terceira Turma, Data:26/09/2016);
  4. As discussões que levaram à aprovação desse enunciado estão disponíveis em https://www.cjf.jus.br/cjf/corregedoria-da-justica-federal/centro-de-estudos-judiciarios-1/publicacoes-1/jornadas-cej/iii-jornada-de-direito-civil-1.pdf, p. 219/222;
  5. Orientações da SUSEP ao mercado. Provisões técnicas, atualizado em marco/2018, disponível em: http://www.susep.gov.br/setores-susep/cgsoa/copra/arquivos-copra/orientacoes/Provisoes%20Tecnicas%20-%20Versao%20-%202018_03.pdf [acesso em 16 de maio de 2023];
  6. Disponível em http://www.susep.gov.br/setores-susep/cgsoa/coaso/arquivos-outros/Manual%20de%20Contabilidade%20do%20Mercado%20de%20Seguros%20-vigencia%20jan-2019-%20versao%20final.pdf;
  7. Nesse sentido, acusação formulada pelo MPF na Paraíba: https://www.mpf.mp.br/pb/sala-de-imprensa/noticias-pb/mpf-denuncia-quatro-pessoas-por-envolvimento-em-fraudes-em-empresa-de-2018protecao-veicular2019-na-paraiba. O caso teve sentença condenatória proferida em primeiro grau: https://www.mpf.mp.br/pb/sala-de-imprensa/noticias-pb/apos-acao-do-mpf-justica-condena-investigados-por-fraudar-seguro-de-carros-na-paraiba;
  8. https://www.mpf.mp.br/pb/sala-de-imprensa/noticias-pb/a-pedido-do-mpf-policia-federal-cumpre-mandados-de-busca-e-apreensao-na-paraiba-e-em-pernambuco/view.

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