Em postagem anterior (1), afirmei que as fraudes financeiras em torno das obras públicas em dois grandes grupos: fraudes licitatórias e superfaturamentos. Ambos são tipologias distintas que causam dano ao patrimônio público e podem ocorrer simultaneamente, reforçando ou facilitando um ao outro. Além dessas tipologias de obtenção de recursos espúrios, em fase subsequente do inter criminoso, é comum os agentes se valerem de técnicas de lavagem de dinheiro.
Naquela ocasião, tratei das fraudes licitatórias, agora chegou a vez das várias modalidades de superfaturamento.
Superfaturamento Tradicional (Quantidade, Qualidade e Financeiro)
Um dos objetivos de um processo licitatório hígido e competitivo é evitar contratações com sobrepreço ou com preços manifestamente inexequíveis e superfaturamento na execução dos contratos (art. 11, inciso III, da Lei n. 14.133/21).
Se o sobrepreço ocorre quando o preço orçado para licitação ou contratado está em valor expressivamente superior aos preços referenciais de mercado (art. 6º, inciso LVI, Lei n. 14.133/21), o superfaturamento ocorre em momento posterior, quando do pagamento e ocasionamento de efetivo dado ao erário.
O superfaturamento, enquanto gênero, corresponde a conjunto de práticas que tornam, injustamente, mais onerosa a proposta ou a execução do contrato para a Administração Pública (2).
O entendimento tradicional, consolidado no meio técnico ligado aos órgãos de fiscalização e controle (TCU, CGU, TCE etc.) e também na área de criminalística da Polícia Federal, é de que o superfaturamento é um dano ao erário caracterizado:
- Pela medição de quantidades superiores às efetivamente executadas ou fornecidas;
- Pela deficiência na execução de obra e serviço de engenharia que resulte em diminuição da qualidade, vida útil ou segurança;
- Pelo pagamento de obras, bens e serviços por preços manifestamente superiores aos praticados no mercado ou incompatíveis com os fixados pelos órgãos oficiais competentes;
- Pela quebra do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato em desfavor da Administração por meio da alteração de quantitativos e/ou preços durante a execução da obra;
- Pela alteração de cláusulas financeiras, gerando recebimentos contratuais antecipados, distorção do cronograma físico-financeiro, prorrogação injustificada do prazo contratual ou reajustamento irregulares (3).
Seguindo esse entendimento tradicional sobre superfaturamento, a Lei de Licitação e Contratos Administrativos (Lei n. 14.133/21), no art. 6º, inciso LVII (4), contém redação quase idêntica, definindo superfaturamento como dano provocado ao patrimônio da Administração, caracterizado, entre outras situações, por:
- Superfaturamento pela Quantidade: quando há medição de quantidades superiores às efetivamente executadas ou fornecidas;
- Superfaturamento pela Qualidade: quando se verifica a deficiência na execução de obras e de serviços de engenharia que resulte em diminuição da sua qualidade, vida útil ou segurança;
- Superfaturamento Financeiro: quando ocorrem qualquer das duas situações (i) alteração no orçamento de obras e de serviços de engenharia que causem desequilíbrio econômico-financeiro do contrato em favor do contratado; ou (ii) alteração de cláusulas financeiras que gerem recebimentos contratuais antecipados, distorção do cronograma físico-financeiro, prorrogação injustificada do prazo contratual com custos adicionais para a Administração ou reajuste irregular de preços. Aqui, há o desbalanceamento do contrato por geração artificial de aditivos e antecipação de fluxo de caixa, por exemplo (5). Por exemplo, a empresa dá um desconto em sua proposta de 15% em cima do preço orçado para vencer a licitação; após, no curso da execução do contrato, a empresa recebe indevidamente um aditivo contratual no mesmo percentual ou superior para recompor os prejuízos que teve como o desconto dado na licitação. Essa tipologia de desvio de recursos públicos por superfaturamento é clássica e se chama “jogo de planilhas” ou “jogo de preços”.
Embora se concentre nas formas tradicionais, o art. 6º, inciso LVII, da Lei n. 14.133/21, contém rol exemplificativo ao afirmar a possibilidade de haver superfaturamento caracterizado por “outras situações”.
A evolução dos esquemas criminosos se aprimoraram a ponto de descobrir novas formas de superfaturamento, muito mais sub-reptícios e difíceis de identificação pelos órgãos de controle, tal como ocorre no Superfaturamento Tributário e o “Superfaturamento Legal”.
A sofisticação das atuais organizações dedicadas ao desvio de recursos públicos não mais permite que elas se deem ao descuido de não executarem as obras. A época das obras públicas inacabadas praticamente acabou.
As novas formas de superfaturamento representam desafios na investigação criminal dos agentes e, como é natural em novas tipologias criminosas, ainda não foram completamente compreendida pelas cortes de Justiça.
Superfaturamento Tributário
O Superfaturamento Tributário representa um tipo de desvio de recurso realizado sobre os encargos sociais devidos pela execução da obra pública e representa uma das espécies mais modernas da fraude financeira.
São pressupostos para a ocorrência dessa forma de superfaturamento o emprego de empresa fantasma e a apresentação de proposta fictícia.
Quanto às empresas fantasmas, espécie das empresas de fachada lato sensu, este blog já de deteve em postagem anterior (6).
A empresa fantasma (shell company) é pessoa jurídica que não possui operações empresariais independentes, ativos ou insumos significativos, contínua atividade empresarial ou empregados. Ela foi constituída apenas documentalmente e funciona somente no papel; frequentemente, não possui sede física e usa, quando muito, uma caixa postal como endereço; não realiza pagamentos tributários ou outros pagamentos governamentais obrigatórios; e geograficamente pode ser sediada nos países dos intermediários que a criaram (escritórios de advocacia, contabilidade ou outro prestador de serviço a empresas) ou dos diretores nominais, que possuem poderes limitados sobre a empresa.
Por sua vez, a falsificação de propostas de preços para inflar os montantes destinados à empresa licitante é uma das formas de desvio de recursos em obras públicas, como visto na postagem anterior sobre fraude licitatória (1).
Assim, o superfaturamento tributário corresponde ao desvio de recursos públicos realizado pela apresentação de proposta de preços pela empresa licitante contendo encargos sociais e tributários com trabalhadores que não possui (nem vai contratar) e com tributos que não são devidos (nem serão recolhidos), inflando, com despesas indiretas, o preço da proposta e possibilitando, caso vencida a licitação, a realização da obra e o desvio da “gordura” correspondente aos encargos sociais (5).
Mário César Lopes Jr. inclui o superfaturamento tributário no conceito de Supercusto, ou seja, na diferença entre o Custo de Reprodução e o Custo Real de uma obra (7). A um Supercusto corresponde um Superpreço, ou seja, a diferença entre o preço de reprodução e o preço real de uma obra (ou serviço de engenharia). O Superpreço é, portanto, um preço originado a partir de um custo fictício, pois o Supercusto corresponde a uma parcela fictícia, irreal, do custo da obra, que não acontece, embora seja cobrada (ao se compor o preço, que é apresentado na fatura).
Essa modalidade de superfaturamento tributário é perceptível, em todas as suas características, no caso de obras públicas atribuídas a “empresas fantasmas”.
Por definição, a constituição de empresas “fantasmas” é prática colusiva que consiste na criação, por meio de registro nas juntas comerciais, de empresas que não atuam de fato no mercado (ou atuam se valendo da estrutura empresarial de outra), mas “participam” das licitações públicas com o intuito único de conferir aparência de legalidade ao certame. A participação de empresa “fictícia” em licitação implica necessariamente também na formulação de uma proposta fictícia – documento fundamental para a materialização do superfaturamento tributário.
Na prática, sagrando-se vencedora, o adimplemento contratual – se ocorrer – será feito por outra empresa, que detém a estrutura operacional necessária (empregados, maquinário, veículos, etc.), ou a realização das obras é feita pelos servidores do próprio ente público.
A empresa fantasma não tem nenhuma atividade econômica e é utilizada apenas para fornecer documentos para as licitações e notas fiscais “frias” de serviços que não executou, como forma de dar aparência de legalidade às licitações e ao desvio de recursos públicos. Em última análise, as movimentações financeiras da empresa no suposto recebimento dos recursos públicos e seu posterior desvio em favor dos beneficiários se enquadram, em tese, como dissimulação do proveito de crime antecedente, consistindo em típico crime de lavagem de dinheiro.
Imagine o seguinte exemplo, retirado de investigação real: Operação Recidiva do MPF na Paraíba em 2019, no processo n. 0800136-44.2019.4.05.8205.
A denúncia apresentada pelo MPF expõe que, em sua proposta de preços fictícia (8), no montante de R$ 503.912,49, uma empresa fantasma do ramo da construção civil embutiu as despesas com encargos sociais e tributários com trabalhadores que não possuía (nem contratou posteriormente) e com tributos que não eram devidos (nem foram recolhidos), inflando, com despesas indiretas, o preço da proposta e possibilitando o desvio da “gordura” com o sutil tipo de superfaturamento aqui tratado. Com essas características de superfaturamento, a Controladoria Geral da União apontou em prejuízo de RS 48.917.24.
A empresa fantasma então incluiu em sua proposta de preços (proposta fictícia) os encargos sociais para aumentar o montante de recursos públicos a receber e os desviou em proveito próprio, uma vez que nem sequer possuía a base de sustentação desses encargos: quais sejam, não tinha trabalhadores (nem os contratou) e não realizou o fato gerador dos tributos (não executou a obra).
Como nova forma de superfaturamento, é compreensível o Poder Judiciário não alcance o funcionamento de suas engrenagens logo nos primeiros casos.
Por esse motivo, a sentença julgou a acusação improcedente nesse ponto, sustentando que, quando a empresa contratada executa a obra pública, deve receber os valores relacionados na sua proposta de preços. Ainda, que, caso se apurasse, posteriormente, que as obrigações referentes aos encargos sociais não foram adimplidas, o caminho seria o de responsabilizar o empregador na seara adequada (v.g., na Justiça do Trabalho, quanto às parcelas devidas aos trabalhadores), não simplesmente lhe imputar dano aos cofres públicos. Em outros termos, a sentença entendeu que o superfaturamento aqui tratado é mero descumprimento das normas trabalhistas e tributárias.
Ora, como seriam meros ilícitos trabalhistas e tributários se a empresa simplesmente não existe (exceto no papel) e não possui empregados ou realizou o fato gerador dos tributos? Na verdade, o empresário falsificou dados da proposta de preços da empresa (incluindo despesas indiretas no valor de R$ 48.917.24) para aumentar os recursos públicos por ele recebidos e, posteriormente, os desviar em seu proveito.
Não trata o presente caso de empresa legítima (com atividade empresarial e empregados) que deixa de recolher os encargos sociais de seus trabalhadores ou pagar tributos, mas sim de algo muito mais grave e de natureza completamente diversa: “empresa fantasma” que não possui funcionários ou atividade empresarial e, por meio de proposta fictícia, apodera-se ilegalmente de verbas públicas destinadas a encargos sociais.
Por não existirem empregados, sequer é possível que alguém possa processar a empresa na Justiça do Trabalho. Igualmente, por não ter atividade empresarial, não houve fato gerador do tributo, não havendo como ele ser lançado.
O emprego de empresa fantasma também não é mero caso de terceirização de alguns serviços. É fato que a subcontratação é comum na construção civil, pela impossibilidade de a licitante vencedora ser a proprietária de todos o maquinário (v.g., caminhões e retroescavadeiras) necessários para a realização das obras. A atuação (normal) de terceiros, todavia, não se confunde com a empresa fantasma, porque neste caso há o empréstimo da personalidade (i.e., o licitante atua apenas “vendendo” documentos, como os boletins de medição e conta bancária), ao passo que naquele (a execução regular de obras, ainda que com parcelas terceirizadas) a contratada efetivamente vincula-se ao empreendimento (v.g., fiscalizando a atuação das subcontratadas e garantindo que os seus serviços sejam prestados em conformidade com os projetos técnicos, bem como executando, com pessoal próprio, parcelas significativas do objeto contratado).
A utilização de empresas fantasma de “fachada” parte de um equívoco dos gestores públicos: pensam que, tendo recebido verbas federais, basta a apresentação da obra prevista, ainda que direcionada/fraudada a licitação e permeada de irregularidades graves a execução da despesa pública (v.g., boletins de medição sem o correto atesto do engenheiro fiscal), para que se conclua pela licitude da aplicação e, por conseguinte, pela aprovação das contas.
É, um grande erro: sem a demonstração cabal de que os recursos públicos foram efetivamente empregados naquela obra (i.e., sem o vínculo entre a verba descentralizada e o objeto executado, o que só se estabelece com a observância de todas as fases previstas – projetos adequados, licitação imaculada, execução da despesa idônea etc.), não há como garantir que eles não foram desviados. As obras podem ter custado menos do que previsto inicialmente (e desviada a parcela restante) ou, pior, outras fontes, como recursos próprios, podem ter sido utilizadas (o que, de novo, enseja desvios).
A propósito, nas obras com empresas fantasmas, algumas vezes tocadas (a denominada execução direta, admitida pela lei, desde que realizada às claras – Lei 8.666/93, arts. 6º, VII, e 10, I) por servidores municipais, os desvios e prejuízos aos cofres públicos são das mais variadas espécies.
Os ganhos ilícitos envolvem direitos trabalhistas não pagos e tributos não recolhidos. Mas eles vão além, por exemplo: a) as horas em que os servidores municipais trabalham nas obras deveriam ser gastas não naquelas, mas sim com os serviços do ente local à população (v.g., em escolas); b) na execução direta das obras, os custos são bastante inferiores aos de uma empresa, porque não existem lucros a serem considerados, o que leva à redução do BDI – Benefícios e Despesas Indiretas (parcela que onera todas as composições de preços de obras públicas na execução indireta); c) tampouco, na execução direta, se cogita de custo de mão de obra ou de encargos sociais (parcela que se agrega ao custo horário da mão de obra, de modo a contemplar obrigações diversas do empregador, como férias remuneradas e 13º salário), pois tais valores já integram o orçamento normal do município.
“Superfaturamento Legal”
O chamado “superfaturamento legal” representa uma forma de se obter ganhos maiores na construção civil, mas não existe legislação suficiente no Brasil para o qualificar como ilícito, seja no âmbito penal ou administrativo. Não por outro motivo, essa forma de “superfaturamento” é recorrente em contratação de obras de engenharia em todos os âmbitos da federação.
O superfaturamento “legal” (superpreço) corresponde à diferença entre preço de mercado aferido pelo Sistema Nacional de Pesquisa de Custos e Índices da Construção Civil – SINAPI, conforme determina o Decreto n. 7.983/13, e o preço real das obras de engenharia, gerando um custo fictício embutido no preço (5).
A diferença entre o preço de referência do SINAPI (maior que o preço de mercado) e o preço real dos bens empregados na construção civil (menor em relação ao SINAPI), cria uma forma de “gordura” que pode ser usada para remunerar com propinas os agentes públicos e permitir, ao mesmo tempo, a execução da obra pública. É o melhor dos mundos para o criminoso.
Assim, embora exista a possibilidade de ocorrerem novas formas de superfaturamento, ante o rol exemplificativo do art. 6º, inciso LVII, da Lei n. 14.133/21, enquanto os preços praticados pelo SINAPI foram legalmente praticados em valor sabidamente do que os preços reais da construção civil, os orçamentos e propostas que se baseiem no SINAPI, tal como determinado pelo Decreto n. 7.983/13, estão respaldados legalmente.
Ainda que a experiência indique que essa diferença a maior seja usada para pagamento de propina a agentes públicos, não há como afirmar sua ilegalidade apenas observando sua desproporção nos orçamentos e propostas de preços.
A anotação sobre essa forma de “superfaturamento” é registrada aqui como forma de alertar os agentes de investigação e fiscalização para a tipologia.
Notas
- https://investigacaofinanceira.com.br/tipologias-de-fraudes-financeiras-iii-obras-publicas/;
- LEITÃO, Antônio Jorge, Obras Públicas: Artimanhas & Conluios, 5. ed. São Paulo: Liv. e Ed. Universitária de Direito, 2014;
- BARBOSA, Sídney de Oliveira. MUNIZ DE ALBUQUERQUE, Thiago Mendonça. A Deficiência na Qualidade de Obra de Engenharia Traduzida em Valores Monetários, anais do VIII SPENG Seminário de Perícias de Engenharia da Polícia Federal, realizado entre 11 a 15 de abril de 2016, Maceió-AL, p. 45/46;
- Disposição no mesmo sentido consta do art. 31, § 1º, incisos I e II, da Lei nº 13.303 de 30 de Junho de 2016, que trata do o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias, no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;
- LOPES JÚNIOR. Mário César. Quando o Superfaturamento é Legal é Preciso Mudar o Conceito de Superfaturamento, a Percepção do Mercado e o Sistema de Contratação de Obras Públicas, anais do VIII SPENG Seminário de Perícias de Engenharia da Polícia Federal, realizado entre 11 a 15 de abril de 2016, Maceió-AL, p. 89/93;
- https://investigacaofinanceira.com.br/submundo-dos-mercados-financeiros-ii-empresas-de-fachada/;
- LOPES JÚNIOR. Mário César. Supercusto: o Lado Sistêmico do Superfaturamento de Obras Públicas, 2014, Maceió: Edição do Autor. p. 48;
- A rigor, os encargos trabalhistas estão na parte da planilha da empresa que orça o custo de mão de obra (custos diretas) e os tributos dentro do BDI (custos indiretos, Decreto n. 7983/13);