A lavagem de dinheiro é o denominador comum dos fenômenos criminais característicos do submundo dos mercados financeiros. É na lavagem que o dinheiro sujo morre e o dinheiro limpo começa nova vida. Todos os caminhos levam a Roma, assim como as rotas dos submundos financeiros conduzem a (ou são conduzidas por) mecanismos de lavagem de capitais.
Ocultar capital ilícito está na raiz de existência dos paraísos fiscais e seus serviços financeiros voltados para a evasão fiscal (1). O véu corporativo das empresas de fachada representa tipologia de lavagem em que se garante o anonimato do beneficiário final (2). Organizações criminosas exploram muitos mercados ilícitos, mas todas se voltam à lavagem de dinheiro no fim do dia de trabalho e essa atividade assegura a fortuna e a continuidade das atividades dos mais poderosos e sanguinários criminosos do planeta (3). O cibercrime adotou com denodo as tipologias surgidas a partir do criptomercado (4). A lavagem de dinheiro foi ensinada a terroristas e por meio dela fluem o financiamento de midiáticos atos de barbárie (5).
O Denominador Comum do Submundo dos Mercados Financeiros
Dados da EUROPOL indicam que 68% dos grupos e redes criminosos utilizam métodos básicos de lavagem de capitais, como o investimento em propriedades ou em bens de elevado valor. Mais de 80% utilizam estruturas empresariais legais e cerca de metade das redes criminosas criam as suas próprias estruturas empresariais (6). No auge da crise financeira de 2008, o dinheiro lavado pelas organizações criminosas no sistema financeiro americano foi o único capital de investimento líquido à disposição de alguns bancos para evitar a falência (7). Na lavagem de dinheiro internacional, o mascaramento procura dar aparência de legalidade a fluxos financeiros ilícitos (illicit financial flows, IFFs): a movimentos ilegais de dinheiro ou capital de um país para outro (8). Mesmo em meio a tragédias, os lavadores prosperam, como se observou na exploração de vulnerabilidades durante a pandemia de Covid-19 (9).
A economia paralela da lavagem de dinheiro não só permite a expansão das organizações criminosas. Ela causa perdas consideráveis nas receitas estatais através de sonegação de tributos, permite a infiltração de capital sujo em negócios legítimos, com distorção da concorrência e do ambiente de livre mercado, e põe em risco as instituições financeiras exploradas e demais clientes do mercado. Basta imaginar a manipulação do mercado de capitais a partir de investimentos a fundo perdido em ações de determinada empresa, quando o objetivo do criminoso não é ter lucro com a operação, mas lavar os recursos no resgate de parte do capital investido.
Embora exista consenso sobre seu malefício, a introdução de capital sujo no sistema financeiro não é novidade. Desde os negócios duvidosos dos Médici na gênese do sistema bancário até as operações reveladas pelas reportagens do Consórcio Nacional de Jornalista Investigativos sobre os paraísos fiscais (1), há muito capital ilícito em todos os mercados financeiros.
Por ter sido um dos primeiros setores da economia utilizado para a lavagem de dinheiro, o setor bancário (mercado de crédito) foi também aquele que recebeu maior regulamentação, em grande parte dos países. As instituições bancárias continuam a ser, a um só tempo, os alvos preferenciais da lavagem de dinheiro e as instituições financeiras mais preparadas para o cumprimento das obrigações previstas em lei (10). O aumento da supervisão sobre o setor bancário tornara mais difícil para as redes criminosas introduzirem rendimentos ilícitos na economia legal através dos canais tradicionais. Como resultado, os atos de lavagem tendem a se deslocarem para setores com controles emergentes ou supervisão limitada, tais como formas alternativas de remessas de dinheiro, comércio internacional e criptoativos, formando novas tipologias de lavagem.
De modo geral, a regulamentação em matéria de lavagem de dinheiro é de interesse das instituições financeiras, como forma de manutenção da confiança no sistema em si, pois um dos mais importantes ativos da instituição financeira é a sua credibilidade. A despeito de toda a rentabilidade dessas operações com capital sujo, mais importante ainda para a instituição financeira é manter a imagem e a reputação, fatores atrativos para a maior parte dos usuários do sistema financeiro (10). O problema passa a ser quando o mercado financeiro não adota providências efetivas para identificar e extirpar o capital sujo do sistema. Esse é, por exemplo, o problema político por trás do fenômeno dos paraísos fiscais (1).
A escala precisa do financiamento ilícito gerado através da lavagem de dinheiro é difícil de avaliar devido a graves lacunas de informação sobre volume de negócios e lucros criminosos. Um dos índices que procuram metrificar o fenômeno, o Basel AML Index é publicado anualmente pelo International Centre for Asset Recovery at the Basel Institute on Governance (11). Os dados de 2022 indicam que o progresso no combate à lavagem de capitais e ao financiamento do terrorismo permanece paralisado. O risco médio global de lavagem de dinheiro está estagnado em 5,25 em 10, onde 10 é o nível de risco máximo.
Lavagem de Dinheiro Como Um Serviço
Assim como o cibercrime se tornou um serviço subcontratado por outras organizações criminosas (4), na lavagem de dinheiro isso já acontecia há anos. A lavagem de dinheiro como um serviço (money laundering as a service) ou a lavagem de dinheiro terceirizada (third-party laundering) nada mais é do que um reflexo da profissionalização dos lavadores de dinheiro e da extensão de sua importância nas atividade criminais além do círculo restrito de uma só organização criminosa. Todos ganham: lavadores profissionais podem captar clientes variados por serem autônomos e criminosos organizados podem escolher pessoas com conhecimentos especializados e a infraestrutura necessária para explorar o setor financeiro legal e oferecem uma vasta gama de serviços.
Lavadores profissionais mantêm à mão estruturas empresariais, incluindo empresas de fachada em jurisdições offshore, possuem contas bancárias em vários países e são capazes de empregar uma vasta gama de técnicas de lavagem, desde transportadores de dinheiro, redes de mulas de dinheiro, operações bancárias clandestinas até técnicas mais complexas, como a negociação de criptoativos e esquemas de compensação implementados por corretores internacionais (6).
A existência de lavadores de dinheiro profissionais permite o surgimento de um sistema financeiro paralelo, completamente desligado dos mecanismos de supervisão que regem a indústria de serviços financeiros lícitos. Se no sistema financeiro lícito há instituições financeiras, consultores de investimentos, empregados dos bancos e clientes; no sistema financeiro paralelo surgem, respectivamente, lavadores de dinheiro profissionais atuando como verdadeiras instituições financeiras, lavadores agindo como consultores financeiros, mulas de dinheiro e criminosos como clientes do serviço.
Para ilustrar esse paralelismo entre as funções de ambos os sistemas financeiros, a EUROPOL elaborou o seguinte gráfico (6):
No século I, Roma tinha 80 mil quilômetros de estradas que levavam à capital. Hoje, os profissionais da lavagem de dinheiro possuem muito mais que 80 mil rotas para conferir aparência de legalidade ao dinheiro sujo, ao gosto do cliente, seja ele quem for. Por todos os casos que vieram a público, em investigações financeiras desenvolvidas pelos órgãos de investigação estatais, a lavagem de dinheiro profissional é altamente especializada, criativa (quase a 12ª arte) e o seu profissional, um artista dos mercados financeiros.
Ao mesmo tempo em que ocupa papel indispensável nos crimes financeiros, o lavador de dinheiro profissional é também o elo mais fraco da corrente de agentes envolvidos. Lavadores de dinheiro são profissionais liberais bem-sucedidos no crime, muitas vezes formados em Contabilidade, Direito, Administração etc. Eles não estão acostumados a empregar violência física ou moral, como os agentes de organizações criminosas engajados diretamente nos mercados ilícitos principais. Eles não possuem, normalmente, poder político e atuam nas sombras. Uma vez trazidos à luz do conhecimento das autoridades públicas por uma investigação, por exemplo, poucos clientes vão querer lhes proteger.
Não por acaso, lavadores de dinheiro estão entre os primeiros a colaborar com as investigações. O negócio deles não é baseado em lealdade ao cliente a quem prestam um serviço, o negócio deles é baseado em lucro e, uma vez envolvidos em investigações, seus bens podem ser sequestrados e confiscados. Em uma Investigação Financeira, os profissionais da lavagem de dinheiro são alvos de alto valor (high-value targets, HVTs) (6) e a cessação de suas atividades gera interrupção em diversas cadeias criminosas.
Fases da Lavagem de Dinheiro
Na maioria dos casos, a lavagem de dinheiro não é ato isolado, consumado em único momento. Dar aparência de legalidade a capital obtido com práticas criminosas envolve, em regra, o engajamento em diversos atos sub-reptícios, representando um processo de mascaramento. A lavagem de dinheiro é, portanto, ato ou processo direcionado pelos agentes a ocultação ou dissimulação da natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens provenientes de atividade infração penal. Para disfarçar os lucros ilícitos, os agentes idealizam um processo branqueamento do capital em três fases teoricamente distintas.
No início há a fase da colocação, também chamada de placement, ocultação ou conversão. Nela, o agente busca distanciar os fundos ilícitos de sua origem criminosa, literalmente os colocando em alguma atividade econômica. Embora bastante associada ao mercado financeiro, a lavagem de dinheiro não ocorre exclusivamente por meio de instituições financeiras. A colocação do capital sujo pode correr em qualquer dos setores da atividade econômica: primário (agricultura, pecuária e extrativismo); secundário (indústria); ou terciário (serviços e atividades comerciais).
A colocação pode ocorrer pela alteração qualitativa dos bens, seu afastamento do local da prática da infração antecedente ou outras condutas similares (12). Nesse sentido, fala-se em tipologias de colocação, tais como efetuar depósitos em nome de terceiros, compra de instrumentos negociáveis, moeda estrangeira ou outros bens, inclusive ativos virtuais. Para dificultar a identificação, os valores podem ser depositados em frações para burlar os mecanismos de controle ou por meio de estabelecimentos comerciais que usualmente trabalham com dinheiro em espécie.
Após o momento da colocação do capital sujo na atividade econômica, ocorre a fase da ocultação, também chamada delayering, mascaramento ou dissimulação. Agora, o lavador de dinheiro realiza movimentações financeiras, não raras vezes com o emprego de algum ato fraudulento, com o objetivo de quebrar a cadeia de evidências (paper trail) e dificultar o rastreamento contábil dos recursos por sistemas estatais de prevenção ou por investigações criminais. Tipologias de ocultação envolvem o emprego de contas anônimas, contas abertas em nome de “laranjas” ou utilização de empresas fictícias ou de fachada.
Não raras vezes, os atos de ocultação podem se confundir com os atos de colocação, tais como o uso de contratos ou notas falsas de prestação de serviços ou compra de bens inexistentes para ocultar a origem dos recursos ilícitos. Em outros casos, os atos de ocultação são posteriores aos atos de colocação, como na simulação de pagamentos ou compra com recursos já mascarados, em preparação para a etapa final da lavagem de dinheiro (12).
A digitalização dos mercados financeiros permitiu vertiginosa rapidez de movimentação de recursos na fase de ocultação da lavagem de dinheiro, valendo-se transações eletrônicas. Com o mesmo propósito, o mercado de criptoativos permitiu transações rápidas, baratas e à parte do mercado de controle tradicional da lavagem de capitais montado ao redor das instituições financeiras.
Por fim, no último momento do intento criminoso, ocorre a fase da integração, quando os recursos ocultados na fase anterior são incorporados novamente a alguma atividade econômica e ficam disponíveis aos agentes com aparência de licitude. Nesse momento, os recursos retornam, por exemplo, para empreendimentos empresariais que fornecerão lucros aos agentes.
A integração pode ocorrer em conjunto com os atos de ocultação da fase anterior. Os ativos de origem criminosa – já misturados a valores obtidos em atividades legítimas e lavados nas complexas operações de dissimulação – são reciclados em simulações de negócios lícitos, como transações de importação/exportação simuladas, com preços excedentes ou subfaturados, compra e venda de imóveis com valores diferentes daqueles de mercado, ou em empréstimos de regresso (loanback), pagamento de protesto de dívida simulada via cartório, entre outras práticas (12).
A divisão do processo de lavagem de dinheiro em fases é meramente teórica. Ela serve para organizar os pensamentos e traçar um mapa teórico ideal para a atividade criminosa, envolvendo seu momento inicial até sua conclusão. A vida real é, como sempre, bem mais complexa. Não raras vezes, as fases se misturam e podem chegar a nem ocorrer.
A apresentação do processo de lavagem em fases destaca que o intuito de se realizar todas as fases é o que diferencia a lavagem de dinheiro de outros fenômenos. A lavagem é processo dinâmico que tem por objetivo final a integração do capital à economia lícita. Não se trata de um simples ato de ocultação, de um mero esconder bens de origem delitiva, mas de uma atividade voltada à simulação, à confecção de uma roupagem legítima a recursos escusos – ainda que tal objetivo não seja necessariamente alcançado (12).
Em muitos países, assim como no Brasil (13), o tipo penal da lavagem de dinheiro foi escrito com elementares alternativas, configurando o crime de ação múltipla ou plurinuclear, consumando-se com a prática de qualquer dos verbos mencionados na descrição típica e relacionando-se com qualquer das fases da lavagem de capitais, não exigindo a demonstração da ocorrência de todos os três passos do processo de lavagem. Por outro lado, o elemento subjetivo necessário à tipicidade da lavagem de dinheiro é mais amplo e tem por referência todas as etapas do crime em tela: a vontade de lavar o capital, de reinseri-lo na economia formal com aparência de licitude. Ainda que no plano objetivo seja suficiente a mera ocultação dos bens, na esfera subjetiva sempre será necessária a intenção de reciclá-los, o desejo de completar o ciclo de lavagem (12).
Notas
- https://investigacaofinanceira.com.br/submundo-dos-mercados-financeiros-i-paraisos-fiscais/;
- https://investigacaofinanceira.com.br/submundo-dos-mercados-financeiros-ii-empresas-de-fachada/;
- https://investigacaofinanceira.com.br/submundo-dos-mercados-financeiros-iii-crime-organizado/;
- https://investigacaofinanceira.com.br/submundo-dos-mercados-financeiros-iv-cibercrime/;
- https://investigacaofinanceira.com.br/submundo-dos-mercados-financeiros-v-terrorismo/;
- EUROPOL. European Union Serious and Organised Crime Threat Assessment (EU SOCTA) 2021. A Corrupting Influence: The Infiltration and Undermining of Europe’s Economy and Society by Organized Crime. Disponível em https://www.europol.europa.eu/publications-events/main-reports/socta-report;
- SAVIANO, Roberto. Zero Zero Zero, Ed. Companhia das Letras, 2014, p. 270;
- https://gfintegrity.org/issue/illicit-financial-flows;
- FATF (2020), Update: COVID-19-related Money Laundering and Terrorist Financing – Risks and Policy Responses, FATF, Paris, France, www.fatf-gafi.org/publications/methodandtrends/documents/update-covid-19-ML-TF.html;
- LIMA, Carlos Fernando dos Santos. O Sistema Nacional Antilavagem de Dinheiro: As Obrigações de Compliance, in DE CARLI, Carla Veríssimo. Lavagem de Dinheiro. Prevenção e Controle Penal, 2ª ed., Ed. Verbo Jurídico, Porto Alegre, 2013, p. 69 e 79;
- Basel Institute on Governance, 2022. Basel AML Index 2022: 11th Public Edition – Ranking money laundering and terrorist financing risks around the world. Available at: index.baselgovernance.org;
- BADARÓ, Gustavo Henrique. BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de Dinheiro, 2023, Revista dos Tribunais, edição digital;
- Nesse sentido, julgamento do STJ na APn n. 923/DF, relatora Ministra Nancy Andrighi, Corte Especial, julgado em 23/9/2019, DJe de 26/9/2019.
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