Em 1979, Larry Gatlin escreveu: “todo o ouro da Califórnia está em um banco no meio de Beverly Hills, no nome de outra pessoa” (1). Claro, All the gold in California é uma canção country agridoce sobre entrar em um jogo que não se conhece bem, mas podia perfeitamente ser sobre as empresas de fachada – especialmente a versão de Nick Cave para a série True Detective da HBO (2).
Como disse (3), para possibilitar uma eficiente Investigação Financeira, alguns fenômenos sociais – que possuem reflexos criminais – precisam ser bem compreendidos. Não há investigador financeiro que desconheça como funcionam paraísos fiscais, crime organizado, corrupção lato sensu, terrorismo, cibercrime e lavagem de capitais. Entender como gira o mercado financeiro do submundo é tarefa daquele que se pretende seguir o dinheiro.
Após tratar de paraísos fiscais, agora convém observar um fenômeno associado: o véu corporativo proporcionado pelas empresas de fachada.
Beneficiário Final
Em publicação denominada Concealment of Beneficial Ownership (6), o FATF e o Grupo Egmont realizam estudo sobre como pessoas jurídicas, arranjos empresariais e profissionais intermediários ajudam criminosos a esconder seus ativos, identificando as empresas de fachada lato sensu como o elemento-chave para disfarçar o beneficiário final.
O FATF define beneficiário final (beneficial owner) como a pessoa física que, efetivamente, possui ou controla um cliente e/ou a pessoa física em nome de quem a transação esteja sendo conduzida, incluindo também as pessoas que exercem o controle efetivo final de uma pessoa jurídica ou de outra estrutura jurídica (7). O conceito de beneficiário final envolve uma ou mais pessoa física, já que pessoas jurídicas não podem exercer o controle efetivo final sobre ativos, pela evidente razão de que elas são sempre controladas, direta ou indiretamente, por pessoas físicas.
A ideia de controle efetivo final é nuclear para a distinção entre beneficiário final e beneficiário legal. O FATF define este como é a pessoa física ou jurídica que detém a propriedade legal sobre o ativo, mas nem sempre exerce aquele controle efetivo final, particularmente quando os ativos são propriedades de trust ou outra pessoa jurídica. O beneficiário legal é apenas um proxy para o controle real da empresa e, nesse contexto, é relevante apenas na medida em que o controle possa ser inferido a partir dele (8).
Internacionalmente, há vários standards a serem observados sobre o beneficiário final. O FATF expediu as recomendações 24 e 25 acerca das medidas de transparência relacionadas a estruturas societárias particularmente suscetíveis à lavagem de dinheiro e ao financiamento ao terrorismo.
A Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção prevê, de forma cogente para seus signatários, dentre os quais o Brasil, medidas para prevenir a corrupção destinadas ao setor privado, a promoção da transparência entre entidades privadas, incluída a identificação das pessoas jurídicas e físicas envolvidas no estabelecimento e na gestão de empresas (art. 12, 2, c).
De igual modo, a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional prevê medidas para prevenir a utilização indevida de pessoas jurídicas por grupos criminosos organizados, tais como o estabelecimento de registros públicos de pessoas jurídicas e físicas envolvidas na criação, gestão e financiamento de pessoas jurídicas (art. 31, 2, d, i).
Entre os tratados adotados pela ONU, o mais minudente é a Convenção para Supressão do Financiamento ao Terrorismo, que determina aos Estados medidas para que, no que se refere à identificação de pessoas jurídicas, exigir que as instituições financeiras, quando necessário, adotem medidas para confirmar a existência jurídica e a estrutura do cliente obtendo, junto a um cartório, ao cliente ou a ambos, comprovação de constituição, inclusive informações no que se refere a nome do cliente, forma jurídica, endereço, diretores e disposições que regulamentam a autoridade para estabelecer obrigações legais para a referida pessoa jurídica (art. 18, 1, b, ii).
Técnicas de Obscurecimento
Aquele que exerce controle efetivo final sobre algum ativo pode estar escondido por trás de um denso véu corporativo, constituído por pessoas jurídicas e arranjos legais, engendrado para frustrar investigações das autoridades estatais. Às vezes, o véu é tão espesso que representa, efetivamente, um beco sem saída para as autoridades investigativas.
FATF e Grupo Egmont dividem essas técnicas de obscurecimento em quatro métodos principais, a seguir explorados.
Complexas Estruturas Controle
A criação de estruturas empresariais, ainda que complexas, não é ilegal. Elas podem ser pensadas para atender a necessidades próprias de empreendimentos de escala global e sua complexidade pode ser atribuída às estratégias empresariais de elisão fiscal.
O que diferencia legítimas estratégias comerciais de técnicas de obscurecimento é a transparência quanto ao beneficiário final. Negócios legítimos são geralmente transparentes às autoridades estatais quanto à identificação do beneficiário final dentro da estrutura negocial.
Em um contexto de ilegalidade, o objetivo de criar complexas estruturas empresariais de propriedade e controle, com o uso de pessoas jurídicas e arranjos legais, estabelecidas em múltiplas jurisdições, nada mais é do que afastar os ativos da figura do beneficiário final e, com isso, frustrar investigações a respeito da origem e do destino dos ativos. Quanto maior o número de estruturas societárias interpostas, mais desafiadora é a Investigação Financeira.
Normalmente, os ativos são controlados por meio de combinação entre meios diretos e indiretos. O beneficiário final está, frequentemente, por trás de camadas e mais camadas de uma cadeia de propriedades (controle direto), bem como de profissionais intermediários e terceiros exercendo controle em seu nome (controle indireto). Em alguns poucos casos, o beneficiário final exerce apenas controle indireto e não retém o controle direto através de uma cadeia de propriedades.
O Ministério Público Federal, em publicação sobre investigação patrimonial, assinala que essa engenharia societária abusiva está relacionada a um fenômeno de alanjamento corporativo, que parte da criação de empresas de fachada ou do aproveitamento de sociedades inativas, mediante simulação de atividade operacional ou não, para acumulação artificiosa de ativos ou passivos, intermediação de negociatas, ruptura do rastro financeiro ou mero embaraço à identificação de seu beneficiário final (9).
As estruturas empresariais com propósitos ilícitos são montadas, quase sempre, com o emprego de três figuras típicas denominadas aqui de empresas de fachada lato sensu:
a) empresa fantasma (shell company): pessoa jurídica que não possui operações empresariais independentes, ativos ou insumos significativos, contínua atividade empresarial ou empregados. Ela foi constituída apenas documentalmente e funciona somente no papel; frequentemente, não possui sede física e usa, quando muito, uma caixa postal como endereço; não realiza pagamentos tributários ou outros pagamentos governamentais obrigatórios; e geograficamente pode ser sediada nos países dos intermediários que a criaram (escritórios de advocacia, contabilidade ou outro prestador de serviço a empresas) ou dos diretores nominais, que possuem poderes limitados sobre a empresa. Empresas fictícias são responsáveis por metade dos casos estudados pelo FATF;
B) empresa de prateleira (shelf company): empresa inativa, com inativos acionistas e diretores. Mesmo que no passado ela tenha estabelecido relações comerciais legítimas, a empresa de prateleira é deixada dormitando (em alguma prateleira, daí o nome) por longo período com o objetivo de posterior “venda”. Quando um cliente procura um prestador de serviço para adquirir uma empresa, a existência de diversas shelf companies no catálogo do prestador é apreciável, pois reduz o tempo que seria necessário para formar uma shell company desde o começo. Na verdade, essa antiguidade e histórico negocial são um dos principais atrativos da empresa de prateleira, pois são fundamentais para a obtenção de melhores contratos de seguro ou linhas de crédito após a reativação da empresa anos depois. Em geral, quando mais antiga a empresa de prateleira, mais alto é o seu preço no mercado de “empresas de fachada de segunda mão”;
C) empresa de fachada stricto sensu (front company): empresa plenamente funcional com as características de um negócio legítimo, mas que serve para disfarce de atividades financeiras ilícitas. Ela é uma entidade legalmente constituída que participa do mercado, mas é utilizada para contabilizar recursos oriundos de atividades ilícitas, mesclando com recursos provenientes de sua própria atividade. Essa atividade financeira propositadamente confusa serve, por exemplo, para disfarçar o destino de parte dos recursos ao beneficiário final – equivalendo fase da lavagem de capitais denominada integração. Em tese, qualquer empresa pode servir de front company, mas elas são mais comuns em atividades que lidam com dinheiro em espécie, tais como restaurantes, clubes noturnos ou salões.
As empresas de fachada lato sensu podem assumir a configuração jurídica de qualquer sociedade empresarial existente nos países em que elas foram criadas, existindo, por óbvias razões de anonimato, maior propensão ao uso de companhias (sociedade por ações), as várias formas de limited liability companies (LLCs), fundações privadas, trusts (que aparecem em um quarto dos casos estudados pelo FATF), companhias com células protegidas (protected cell companies), anstalt etc.
Além do mais, algumas dessas estruturas empresariais podem ser constituídas na forma de sociedades de propósito específico (special purpose vehicles), que possuam uma finalidade determinada e prazo de existência determinado, destinando-se, em geral, a viabilizar, do ponto de vista empresarial, a consecução de grandes projetos mediante a realização de um objetivo preestabelecido (10).
Interpostas Pessoas
Frequentemente aplicadas em conjunto, duas outras técnicas de obscurecimento do beneficiário final são a interposição de pessoas e o uso de instrumentos corporativos e financeiros (tratados no próximo tópico) com o objetivo de criar um falso cenário sobre aquele que exerce o controle final dos ativos.
Em quase todos os casos estudados pela literatura sobre o tema, aparece a figura da pessoa intermediária, que possui várias denominações: laranja, testa de ferro, espantalho (straw man) etc. Nominalmente, esse intermediário se apresenta como acionista, administrador, diretor, procurador ou outro tipo de associado da pessoa jurídica, e tem o papel de proteger e ocultar a identidade do beneficiário final.
O intermediário pode ser apresentar como acionistas ou diretores formais (formal nominee shareholders and directors) ou como acionistas ou diretores informais (informal nominee shareholders and directors). Ambos são registrados como acionistas ou diretores, mas atuam por ordem e para benefício de outra pessoa (beneficiário final) que não aparece nominalmente no quadro corporativo.
No caso dos acionistas ou diretores formais, o controle do beneficiário final se dá por meio de um instrumento jurídico formal, normalmente um trust ou um contrato civil entre eles – muitas vezes não registrado e, portanto, secreto.
Os acionistas ou diretores informais atuam do mesmo modo daqueles acionistas ou diretores formais, com a única particularidade de que o beneficiário final não mantém sobre eles um controle formal e jurídico, apenas informal e decorrente, quase sempre, de parentesco, estreita confiança e antigas relações comerciais. A casuística indica que eles são normalmente esposas, filhos, demais parentes, antigos parceiros comerciais etc.
Sendo uma das tipologias de distanciamento pessoal mais comuns, é natural que ela tenha sido escrutinada pelos estudiosos do tema e por órgãos de investigação estatais.
O Ministério Público Federal, por exemplo, divide esses intermediários em: indivíduos fictícios, criados a partir de documentos forjados; familiares que não contribuíram para a aquisição do patrimônio; “laranjas”, conscientes ou não de sua condição, geralmente escolhidos entre pessoas de baixa renda e (ex-)empregados; testas de ferro (ou “laranjas graduados”) que, além de cederem seu nome e assinatura, mantém a farsa em audiências e entrevistas; e contadores, consultores e advogados que se prestam a figurar como diretores, correntistas ou representantes de empresas, mediante a percepção de honorários (9).
Instrumentos Financeiros
Ao lado da interposição de pessoas, também se verifica o uso disseminado de instrumentos corporativos e financeiros com o objetivo de criar um falso ou enganoso cenário sobre aquele que exerce o controle final dos ativos.
Três são as técnicas mais comuns:
- uso de numerosos beneficiários em contas bancárias com o objetivo de confundir as instituições financeiras e mascarar a verdadeira natureza das transações realizadas na conta;
- uso de pessoas jurídicas que possam emitir ações ao portador (bearer shares) ou certificados de ações ao portador (bearer shares warrants); e
- o uso de profissionais intermediários para a criação e administração de pessoas jurídicas e arranjos legais, tais como advogados, contadores etc.
Em algum momento futuro, esse blog voltará a falar do emprego de profissionais intermediários, os famosos provedores de serviços corporativos (corporate service providers). Por ora, lembre-se que eles estão sempre associados a empresa de fachada conforme recorrente nas reportagens do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (International Consortium of Investigative Journalists, ICIJ), a exemplo do Mossack Fonseca no Panamá e o Appleby em Bermuda (3).
Falsificação de Atividades
Ao contrário das técnicas de obscurecimento do beneficiário final acima descritas, que não são, por si só, ilegais; a falsificação de atividades é claramente criminosa.
Essa técnica por ser dividida em duas tipologias mais comuns:
- uso de falsos empréstimos e falsas contas a pagar: em que os recursos destinados ao beneficiário final são transferidos para seu controle por meio de falsos contratos de dívidas; e
- manipulação de prospecto da empresa, relatório anual etc.: usado principalmente em empresas de fachada stricto sensu (front company), a falsificação de dados de estoque, de entrada e despesa, pode servir para destinação de recursos ao beneficiário final.
- https://www.youtube.com/watch?v=FPJx3G5LE5Q;
- https://www.youtube.com/watch?v=yueHhnyPFAo;
- https://investigacaofinanceira.com.br/submundo-dos-mercados-financeiros-i-paraisos-fiscais/;
- Findley, Michael G.. Global Shell Games: Experiments in Transnational Relations, Crime, and Terrorism (Cambridge Studies in International Relations) (p. 3). Cambridge University Press. Edição do Kindle;
- Apud EMIDIO, Fabiano. Lavagem de Dinheiro e Paraísos Fiscais, Ed. Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2018, p. 94;
- FATF – Egmont Group (2018), Concealment of Beneficial Ownership, FATF, Paris, France, www.fatf-gafi.org/publications/methodandtrends/documents/concealment-beneficial-ownership.html;
- O documento em português pode se consultado em http://www.fazenda.gov.br/orgaos/coaf/arquivos/as-recomendacoes-gafi;
- STAR – Stolen Asset Recovery Iniciative. The Puppet Masters, 2011, p. 21. Disponível em: https://star.worldbank.org/sites/star/files/puppetmastersv1.pdf;
- Brasil. Ministério Público Federal. Câmara de Coordenação e Revisão, 2. Roteiro de atuação: persecução patrimonial e administração de bens / 2ª Câmara de Coordenação e Revisão, Criminal e 5ª Câmara de Coordenação e Revisão, Combate à corrupção. – Brasília: MPF, 2017, p. 104.
- EMIDIO, Fabiano. Lavagem de Dinheiro e Paraísos Fiscais, Ed. Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2018, p. 103.
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