A postagem anterior (1) tratou do mercado de criptoativos, destacando que ele não integra – até o momento – o Sistema Financeiro Nacional. Agora, algumas palavras sobre a regulação de criptoativos no Brasil, a partir das normas que existem no país. As observações são, por evidente, provisórias, uma vez que há perspectiva de aprovação próxima de lei nacional sobre o assunto.
O impacto do Bitcoin – e dos demais criptoativos que se seguiram à sua criação – sobre a economia dos países ao redor do mundo levou, desde o início dos anos 2010, a discussões sobre a sua regulamentação estatal. O intento, no entanto, esbarrou na formatação tecnológica do Bitcoin.
Como se viu (1), as operações com criptoativos ocorrem entre usuários sem instituição financeira intermediária. Sob o ponto de vista do Sistema Financeiro, o Bitcoin representou uma mudança do status quo, ao demonstrar ser possível realizar transações sem intermediários, substituindo a confiança que o mercado depositava nas instituições bancárias por a segurança de um sistema criptográfico.
A descentralização permitida pela tecnologia blockchain apresenta um desafio à regulação estatal, pois evade o foco regulatório histórico em bancos e outras instituições financeiras, entendidos como “pontos de estrangulamento”. Na medida em que os criptoativos excluem esses intermediários como terceiros confiáveis, eles contornam as regulações que os enfocaram. Da mesma forma, sua natureza pseudoanônima compromete a capacidade de implementar políticas de “conheça seu cliente” (know your client, KYC), que estão no centro das regulações contra a lavagem de dinheiro (2).
Ao longo da década passada, identificaram-se três tendências regulatórias para combater a lavagem de dinheiro por meio de criptoativos: a autorregulação, as iniciativas dos governos nacionais e a abordagem baseada em risco do FATF/GAFI (2).
Autoregulação do Mercado
A autorregulaçãocorresponde às medidas adotadas voluntariamente por atores do ecossistema de criptoativos para a observância de normas antilavagem. Os principais agentes a aderirem a esse modelo foram as exchanges, impondo aos clientes a apresentação de comprovantes de residência e documentos de identificação (2). Em alguns países, as corretoras também passaram a voluntariamente comunicar suas atividades às unidades de inteligência financeira. No Brasil, as maiores corretoras de criptoativos, reunidas na associação ABCripto, possuem um código de autorregulação (3) e comunicam suas operações suspeitas ao COAF desde 2019 (4).
Recentemente, o COAF informou que essas comunicações estavam suspensas até a edição de uma lei sobre o assunto (5). Embora procure transparecer prudência, a posição do COAF é incompeensível. As comunicações estavam sendo feitas pelas exchanges há mais de dois anos e, a despeito da ausência de uniformidade, parece que o órgão de inteligência financeira nacional abriu mão de valiosas informações sobre movimentações atípicas realizadas por importantes atores econômicos, apenas à espera de uma legislação nacional que pode demorar.
Regulação Estatal
O modelo de regulação por meio dos governos nacionais ocorreu após a divulgação dos casos de empregos ilícito dos criptoativos ao longo da última década e se centrou, em um primeiro momento, na emissão de um documento de alerta (comunicado, nota pública, etc.) sobre os aspectos potencialmente problemáticos dos criptoativos.
Essas manifestações tipicamente alardeavam o fato desses ativos não serem moeda fiduciária e apontavam os seguintes riscos associados: ausência de proteções legais para investidores e consumidores; elevada volatilidade; possibilidades de uso para a perpetração de ilícitos, como lavagem de dinheiro e financiamento terrorista; e inexistência de regulação sobre provedores de serviços de criptoativos (2).
No Brasil, o BACEN emitiu, em 16 de novembro de 2017, o Comunicado n. 31.379 (6), alertando sobre os riscos decorrentes de operações de guarda e negociações com criptoativos. No documento, o BACEN explica que os criptoativos (chamados de moedas virtuais) não eram emitidos nem garantidos por qualquer autoridade monetária, por isso não teriam garantia deconversão para moedas soberanas, e tampouco eram lastreadas em ativo real de qualquer espécie, ficando todo o risco com os detentores. A leitura do BACEN, naquela ocasião, no entanto, era de que não havia necessidade de regulamentação desses ativos, pois não havia riscos relevantes para o SFN.
O BACEN permaneceu atento à evolução do uso de criptoativos e, posteriormente, adotou outra postura, passando a capitanear o processo de discussão parlamentar das inciativas para regulamentação legal no Brasil, estando cotado para ser o órgão regulador do criptomercado de acordo com o Projeto de Lei mais adiantado em discussão no parlamento (PL 4401/2021) (7).
No mesmo período, a CVM, em janeiro de 2018, expediu o Ofício Circular n. 1/18 aos diretores de fundos de investimentos. O documento esclarecia que criptoativos não poderiam ser qualificadas como ativos financeiros para os efeitos do disposto no art. 2º, V, da Instrução CVM n. 555/14, proibindo sua aquisição direta pelos fundos de investimento. Em complemento, a CVM ainda expediu o Ofício Circular n. 11/2018 tratando sobre investimento indireto em criptoativos (8).
Assim como o BACEN, também a CVM adotou uma postura diferente em relação aos criptoativos ao longo dos anos seguintes. Por meio da Instrução nº 626/2020, que dispõe sobre as regras para constituição e funcionamento de ambiente regulatório experimental (sandbox regulatório), permitiu que pessoas jurídicas possam testar os modelos de negócios com criptoativos.
Recentemente, a apartir de questionamentos ocorridos na Operação Kryptos do Ministério Público Federal, a CVM passou a entender que a oferta pública de contrato de investimento em criptoativos se configuraria como valor mobiliário. Esse assunto será tratado em postagem posterior.
Ainda na abordagem de regulação estatal de criptoativos, a Receita Federal do Brasil expediu Instrução Normativa n. 1.888, de 3 de maio de 2019 (modificada pela IN n. 1.899/2019), estabelecendo a obrigatoriedade de prestação de informações relativas às operações realizadas com criptoativos (9).
Para a RFB, considera-se criptoativo “a representação digital de valor denominada em sua própria unidade de conta, cujo preço pode ser expresso em moeda soberana local ou estrangeira, transacionado eletronicamente com a utilização de criptografia e de tecnologias de registros distribuídos, que pode ser utilizado como forma de investimento, instrumento de transferência de valores ou acesso a serviços, e que não constitui moeda de curso legal” (art. 5º). Para efeitos tributários, os criptoativos passaram a ser considerados um ativo (ainda que virtual) que representa ganho de capital, devendo ser tributado pelo Imposto de Renda em 15% do faturamento.
Exchange de criptoativo, segundo a regulação fiscal, é “a pessoa jurídica, ainda que não financeira, que oferece serviços referentes a operações realizadas com criptoativos, inclusive intermediação, negociação ou custódia, e que pode aceitar quaisquer meios de pagamento, inclusive outros criptoativos”. Incluem-se no conceito de intermediação de operações realizadas com criptoativos, a disponibilização de ambientes para a realização das operações de compra e venda de criptoativo realizadas entre os próprios usuários de seus serviços.
Levando em conta os atos de cautela dos órgãos de fiscalização do SFN (BACEN e CVM), o Tribunal Superior Eleitoral proibiu uso de criptoativos na arrecadação e gastos de campanha desde as eleições de 2018. Atualmente, a Resolução n. 23.607, de 17 de dezembro de 2019, proíbe seu uso para recebimento de doações financeiras (art. 21, § 6º) e para pagamentos de gastos eleitorais (art. 38, § 2º).
Em nível legislativo, o Congresso Nacional possui projetos de lei sobre a regulação de criptoativos (10), sem que nenhum tenha sido aprovado até então. A regulação mais adiantada está no PL 4401/2021, aprovado no Senado Federal e em deliberação na Câmara dos Deputados na data da publicação dessa postagem.
Sem uma legislação específica, o panorama atual é de que, legalmente, criptoativos não são moeda para a legislação brasileira, por não deterem as características de meio de troca, reserva de valor e unidade de conta. A única moeda em curso no país é o Real (art. 1º, Lei n. 9.069/95).
Os criptoativos são ativos, atingidos, em alguns de seus aspectos, por entendimentos da CVM (aprofundados em postagem posterior) e regulamentação da Receita Federal do Brasil. Ademais, nenhum dos atores envolvidos na mineração de criptoativos ou na sua negociação são considerados instituição financeira do SFN.
Igualmente, os criptoativos não são moedas eletrônicas na acepção legal do termo (art. 6º, VI, Lei n. 12.865/13). Moeda eletrônica é a moeda em curso no país (Real) expressa em meio eletrônico (11) e se insere no contexto dos arranjos de pagamento, como visto em postagem anterior (12). Esse arranjo é disciplinado pelo BACEN na Instrução Normativa n. 27/2020.
Também não são criptoativos os casos de Moeda Digital de Banco Central (Central Bank Digital Currency, CBDC), que é a forma digital ou eletrônica da moeda fiduciária, estabelecida como dinheiro através da regulação de um governo, lei ou autoridade monetária. A CBDC do BACEN, inserida no Sistema de Pagamentos Brasileiro, é o Real Digital criado à semelhança de outras emitidas por outros países (13).
Regulação a partir de Standards Internacionais
A última tendência regulatória do mercado de criptoativos centra-se na emissão de standards internacionais. De todos os atores internacionais, o FATF/GAFI se destaca pelos esforços para atualizar sua abordagem baseada em risco, a fim de abarcar o ecossistema de criptoativos (2).
No relatório de 2015 (14), o FATF/GAFI produziu um guia para elucidar a implementação de suas Recomendações aos criptoativos conversíveis. A abordagem sugeria que as medidas antilavagem de dinheiro enfatizassem os pontos de intersecção que fornecem entradas no sistema financeiro regulado (exchanges) e não busquem regular usuários que obtém moedas virtuais para comprar bens e serviços. O foco do tratamento sugerido nas exchanges previa a imposição de exigências de avaliação e mitigação de riscos, devida diligência em relação ao cliente, manutenção de registros, licenciamento ou registro e comunicação de transações suspeitas à autoridades (2).
A forma mais direta pela qual os governos podem controlar o mercado de criptoativos é intervindo na conversão entre a moeda virtual e as moedas fiduciárias (15). E o motivo é muito claro: o fluxo de criptoativos é de difícil fiscalização estatal, por geralmente não haver necessidade de intermediários ou autoridades para mover grandes quantias internacionalmente. A fiscalização proposta pelos padrões do FATF/GAFI não recairia sobre transações efetuadas por usuários individuais por meio de blockchain, que são de baixa rastreabilidade, mas sim sobre os intermediários que possibilitam o contato entre o ecossistema de criptoativos e o Sistema Financeiro, como gerenciadores de carteira, exchanges, estabelecimentos de compra e venda e emissoras de criptomoeda (2).
Em outubro de 2018, o GAFI atualizou suas Recomendações e Glossário para incluir os termos ativos virtuais (virtual assets) e provedores de serviço de ativo virtual (virtual asset service providers, VASPS), bem como a exigência de que estes sejam regulados, supervisionados e obrigados a se registra. Essa disposição foi incorporada ao texto da Recomendação nº 15, relativa a novas tecnologias, cujas implicações foram examinadas em detalhe em um projeto de Nota Interpretativa da Recomendação publicado em fevereiro de 2019 (16).
Em junho de 2019, o GAFI atualizou seu guia para uma abordagem baseada em risco aplicada a ativos virtuais (17), dando novo tratamento aos provedores de serviço (VASPs). Enquanto a versão anterior enfatizava exchanges e a conversão de ativos virtuais em moeda fiduciária, o guia de 2019 destaca o crescente uso de esquemas de conversão entre diferentes criptomoedas a fim de emular a etapa de estratificação da lavagem de dinheiro tradicional e produzir maiores níveis de anonimato e ofuscação. Além disso, destacou o papel crescente de mixers e tecnologias similares na garantia do anonimato.
Nese documento, o GAFI detalha disposições relativas à implementação de medidas preventivas (como obrigações de KYC e manutenção de registros), devida diligência em relação ao cliente (aplicável a transações ocasionais com valores superiores a US$ 1.000,00) e obrigações relativas ao tratamento de informações sobre transferências. Por fim, o guia nota que os países devem assegurar a harmonização entre normas antilavagem de dinheiro e os regramentos de privacidade e proteção de dados pessoais.
A seguir…
Abordagem sobre a evolução de entendimento da CVM sobre as ofertas públicas de investimento em criptoativos advinda da Operação Kryptos do Ministério Público Federal.
- Link: https://investigacaofinanceira.com.br/mercados-financieros-vi-criptoativos/;
- KURTZ, Lahis; LORENZO, Florencia; RODRIGUES, Gustavo. A regulação da União Europeia sobre criptomoedas e riscos de lavagem de dinheiro : uma análise crítica da Quinta Diretiva Antilavagem de Dinheiro frente aos provedores de serviços de criptomoeda. Instituto de Referência em Internet e Sociedade: Belo Horizonte, 2020. Disponível em: <https://bit.ly/3cQIHM5> [acesso em 13 de setembro de 2022];
- Código de Conduta e Autorregulação e Manual de Boas Práticas em prevenção à lavagem de dinheiro e ao financeiamento ao terrorismo para Exchages Brasileiras: https://www.abcripto.com.br/autorregulacao-abcripto;
- Disponível em: https://portaldobitcoin.uol.com.br/oito-corretoras-ja-informaram-sobre-movimentacoes-suspeitas-de-clientes-diz-coaf/ [acesso em 13 de setembro de 2022];
- Sobre a descontinuação de acessos experimentais ao Sistema de Controle de Atividades Financeiras (Siscoaf) na condição de empresa prestadora de serviços de ativos virtuais. Disponível em: https://www.gov.br/coaf/pt-br/assuntos/noticias/ultimas-noticias/sobre-a-descontinuacao-de-acessos-experimentais-ao-sistema-de-controle-de-atividades-financeiras-siscoaf-na-condicao-de-empresa-prestadora-de-servicos-de-ativos-virtuais-psav [acesso em 13 de setembro de 2022];
- O comunicado do BACEN e a exposição de motivos escontram-se disponível em: https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/exibenormativo?tipo=Comunicado&numero=31379 [acesso em 13 de setembro de 2022];
- Banco Central será o regulador do mercado de Bitcoin e criptomoedas no Brasil, garante Deputado Expedito Netto. Disponível em: https://cointelegraph.com.br/news/cryptocurrency-regulation-in-brazil [acesso em 13 de setembro de 2022];
- O portal BlockSherlock possui um apanhado das normas citadas. Disponível em https://www.blocksherlock.com/home/contexto-regulat%C3%B3rio [acesso em 14 de setembro de 2022];
- Norma disponível em: http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?idAto=100592&visao=anotado [acesso em 14 de janeiro de 2020].
- Cite-se o PL nº 3.825/2019, PL nº 3.949/2019 e PL nº 4.207/2020 no Senado Federal e PL nº 2.303/2015 e PL nº 2.060/2019 na Câmara dos Deputados.
- TEIXEIRA, Tarcísio. RODRIGUES, Carlos Alexandre. Blockchain e Criptomoedas, aspectos jurídicos, Ed. Juspodivm, Salvador, 2019, p. 51.
- Link: https://investigacaofinanceira.com.br/mercados-financeiros-ii-credito/;
- O BACEN mantém uma página sobre o Real Digital: https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/real_digital;
- FATF/GAFI, Guidance for a Risk-Based Approach to Virtual Currencies – Convertible Virtual Currency Exchangers. jun. 2015. Disponível em: https://www.fatf-gafi.org/media/fatf/documents/reports/Guid-ance-RBA-Virtual-Currencies.pdf;
- ULRICH, Fernando. Bitcoin: A moeda na era digital. 2014, Kindle edition, posição 133;
- FATF/GAFI. Public Statement – Mitigating Risks from Virtual Assets. GAFI, Paris, 22 fev. 2019. Disponível em: https://www.fatf-gafi.org/publications/fatfrecommendations/documents/regulation-virtual-assets-interpretive-note.html;
- FATF/GAFI. Guidance for a Risk-Based Approach to Virtual Assets and Virtual Asset Service Providers. jun. 2019. Disponível em: https://www.fatf-gafi.org/publications/fatfrecommendations/documents/guidance-rba-virtual-as-sets.html;
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