A Investigação Financeira é metodologia aplicável à atividade de persecução estatal de crimes que geram produto e proveito (1) e o investigador financeiro precisa de familiaridade com o locus por onde transitam a maior parte dos lucros dos crimes e estão depositados os principais dados que guiarão a atividade de persecução estatal: os mercados financeiros.
Em postagem anterior, tratou-se da estrutura do Sistema Financeiro Nacional – SFN, o subsistema normativo de regulação e fiscalização e o subsistema operativo (2). Também se tratou dos mercados de crédito (3), câmbio (4), capitais (5),seguros, capitalização e previdência aberta (6) e, por fim, de previdência fechada (7).
Agora trataremos do mercado de criptoativos, que a despeito de não integrar (até o momento) o Sistema Financeiro Nacional, possui destacada relevância na economia e em investigações financeiras que envolvem, principalmente, lavagem de capitais.
Os sistemas financeiros nacionais foram construídos com avanços paulatinos por aproximadamente seiscentos anos, desde as origens próximas na Itália do século XVI. Suas fundações de intermediação financeira e confiabilidade, montadas em torno de instituições bancárias, representaram características constantes durante todo o período de sua evolução.
Até 18h15 do dia 3 de janeiro de 2009, quando um usuário anônimo denominado Satoshi Nakamoto minerou o bloco gênesis e realizou a primeira transação com o criptoativo que ele denominou Bitcoin.
Pela primeira vez na história, um sistema de transações foi construído para uso em larga escala sem a dependência do modelo de intermediação financeira proporcionado pelas instituições bancárias. A medida que o sistema se provou viável, a adesão de cidadãos e criminosos aos criptoativos modificou também a forma com que as autoridades estatais realizavam suas investigações.
Quando do surgimento do Bitcoin, todos os mercados financeiros já haviam iniciado o processo de migração de suas relações jurídicas para sistemas informáticos, desde as redes bancárias virtuais, passando pelas computadorizadas bolsas de valores, até os novos meios de pagamento. O processo de desmaterialização dos dados financeiros se aprofundou na década de 2010, na esteira da crise financeira global de 2008. Por tal motivo, o dado financeiro, elementos essencial para as investigações financeiras, tornou-se dado informatizado.
Em termos investigativos, os criptoativos representam nova faceta desse dinheiro imaterial, constituído por bits no sistema computacional de alguém. Tal característica aproximou, cada vez mais, a investigação financeira de uma investigação informática, exigindo conhecimento especializado dos investigadores estatais e intercessões entre os sigilos financeiro e telemático.
Sob o ponto de vista do Sistema Financeiro Nacional, como de resto de todos os países, o Bitcoin representou uma mudança do status quo, ao demonstrar ser possível realizar transações sem intermediários, substituindo a confiança que o mercado depositava nas instituições bancárias por a segurança de um sistema criptográfico.
As bases financeiras do Bitcoin estão expostas em um paper de apenas nove páginas que Nakamoto divulgou meses antes de realizar a primeira transação com o criptoativo e logo após a crise financeira das subprimes que gerou a falência do Lehman Brothers em 15 de setembro de 2008.
Em 31 de outubro de 2008, ele publicou repentinamente o artigo Bitcoin: A Peer-to-Peer Electronic Cash System em um fórum online de discussão aberta sobre criptografia (8), sustentando a possibilidade de se criar “uma versão puramente peer-to-peer (entre usuários) de dinheiro eletrônico” que não dependesse de terceiros confiáveis para processar pagamentos. Nakamoto descreve então um sistema de pagamento eletrônico baseado em prova criptográfica ao invés de confiança, permitindo que duas pessoas possam realizar diretamente (peer-to-peer) transações impossíveis de computacionalmente serem revertidas.
Para o sistema de pagamento criptográfico funcionar, Nakamoto criou um criptoativo que descreveu como “uma cadeia de assinaturas digitais”. No Bitcoin, “cada proprietário transfere a moeda para o seguida, assinando digitalmente um hash (9) da transação anterior e a chave pública do próximo proprietário, e adicionando-os ao final da moeda. Um beneficiário pode verificar as assinaturas para verificar a cadeia de propriedade”.
No artigo constava o gráfico que viria a ser replicado sempre que se procura explicar visualmente como o mecanismo de chaves, assinaturas e hashs entre as transações funciona:
O sistema gera, então, a prova computacional da ordem cronológica das operações e eliminaria, ainda, o problema do gasto duplo. Para contornar a inexistência de uma autoridade central de emissão da moeda eletrônica e controlar o problema do gasto duplo, Nakamoto propôs a transparência completa das transações:
O problema, claro, é o sacador não poder confirmar se um dos pagadores não fez gasto duplo da moeda. Uma solução comum é a introdução de uma autoridade central confiável, ou casa da moeda, que verifique o gasto duplo para todas as transações. Depois de cada transação, a moeda deve ser devolvida à casa da moeda para a emissão de uma nova, e apenas moedas emitidas diretamente da casa da moeda são confiáveis de não ser gastas duplamente. O problema desta solução é que o destino de todo o sistema monetário depende da empresa que gerencia a casa da moeda, com todas as transações tendo de passar por ela, assim como um banco.
Nós precisamos de uma maneira que o sacador possa saber se os proprietários anteriores não assinaram quaisquer transações anteriores. Para nossos propósitos, a transação mais antiga é a que conta, por isso, nós não nos preocupamos com as tentativas posteriores de gasto duplo. A única maneira de confirmar a ausência de uma transação é estar ciente de todas as transações. No modelo baseado em casa da moeda, ela está ciente de todas as transações e decide qual chegou primeiro. Para alcançar este objetivo sem uma parte confiável, as transações devem ser anunciadas publicamente, e precisamos de um sistema para que os participantes concordem em um histórico único a ordem em que foram recebidas. O sacador precisa da prova que, no momento de cada transação, a maioria dos nós concorda que ela está sendo recebida pela primeira vez.
Conseqüência dessa transparência completa das transações é o conceito de cadeia de blocos, ou blockchain. De fato, a solução proposta para o gasto duplo se tornou uma das tecnologias mais importantes da atualidade para os mercados financeiros tradicionais, empregada, em larga escala, como tratado no tópico abaixo.
Quanto à privacidade das transações, Nakamoto escreve que o modelo por ele proposto de transparência total das transações se opõe ao modelo bancário tradicional, mas a privacidade sobre a identidade dos usuários pode ser mantida com a quebra do fluxo de informação em outro lugar: mantendo chaves públicas anônimas, ou seja, não as vinculando publicamente ao usuário que as possui. Em suas palavras: “o público pode ver que alguém está enviando uma quantidade para outra pessoa, mas sem informações que ligam a transação a qualquer usuário. Isto é semelhante ao nível de informação divulgada pelas bolsas de valores, onde o tempo e o tamanho dos negócios individuais, a ‘fita’, é tornada pública, mas sem dizer quem são as partes”.
Graficamente, ele representa o modelo da seguinte forma:
Na esteira do Bitcoin, outros criptoativos surgiram, tais como Litecoin (2011), Peercoin (2012), Feathercoin (2013), Ethereum (2016) etc. O CoinMarketCap (coinmarketcap.com) contabiliza, em agosto de 2022, aproximadamente 10.000 tipos de criptoativos, com valor global de mercado global de US$ 1,13 trilhão, dos quais 40% correspondem ao Bitcoin.
A despeito do inegável aumento do mercado de criptoativos, a Diretoria Nacional de Inteligência dos EUA prevê que a sua adoção generalizada pelo público como principal meio de pagamento permanece improvável no futuro próximo (10). O emprego de criptoativos por criminosos nos primeiros anos da década passada (casos Silk Road, arrecadação terrorista jihadista, financiamento neonazista, Alphabay, Hansa e lavagem de produtos do narcotráfico) também se mostrou um empecilho a essa ampla aceitação pelos consumidores em geral.
O Bitcoin não é uma moeda fiduciária. Ela não tem valor porque um governo a emite como moeda corrente. No Brasil, por exemplo, a moeda fiduciária é o Real em decorrência do art. 1º da Lei n. 9.069/95. Todavia, em dez anos de existência e devido a grande variabilidade de seu valor de mercado, alguns criptoativos se atrelaram a uma referência externa com preço variável, tal como uma moeda fiduciária.
Essa categoria específica de criptoativos são denominadas de stablecoins por manterem uma reserva de moeda fiduciária em instituição ou autoridade centralizada, prometendo que todas as stablecoins produzidas no ecossistema são lastreadas em moeda fiduciária e acenando com a possibilidade de troca do criptoativo por moeda fiduciária. A primeira stablecoin do mundo foi o Gemini Dollar (GUSD), lançado em 10 de setembro de 2018 e construído na rede Ethereum, que promete paridade 1:1 com o dólar americano.
Mesmo as stablecoins atreladas a uma reserva de bens e associadas a grandes empresas, como Facebook ou Telegram, encerram preocupações com evasão fiscal, lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo. Em 5 de Dezembro de 2019, a Comissão Europeia e o Conselho argumentaram, com relação a stablecoins, que “nenhum arranjo global de ‘stablecoin’ deve começar a operar na União Europeia até que os riscos e desafios regulatórios, legais e de supervisão tenham sido adequadamente identificados e abordados” (11).
Desde 2021, surgiram no ecossistema dos criptoativos os tokens não fungíveis (non-fungible tokens, NFTs), como itens digitais baseados em blockchain cujas unidades são projetadas para serem únicas, ao contrário dos tradicionais criptomoedas cujas unidades devem ser intercambiáveis. NFTs podem armazenar dados em blockchains e esses dados pode ser associado a arquivos contendo mídia como imagens, vídeos e áudio, ou mesmo em alguns casos, objetos físicos.
NFTs normalmente dão ao titular a propriedade sobre os dados, mídia ou objeto ao qual o token está associado e são comumente comprados e vendidos em mercados especializados. Apenas em 2021, esse mercado movimentou pelo menos US$ 44,2 bilhões (12).
A seguir…
Em postagens adiante, os aspectos regulatórios do mercado de criptoativos serão abordados.
- Link: https://investigacaofinanceira.com.br/siga-o-dinheiro/
- Link: https://investigacaofinanceira.com.br/mercados-financeiros-i/
- Link: https://investigacaofinanceira.com.br/mercados-financeiros-ii-credito/
- Link: https://investigacaofinanceira.com.br/mercados-financeiros-iii-cambio/
- Link: https://investigacaofinanceira.com.br/mercados-financeiros-iii-capitais/
- Link: https://investigacaofinanceira.com.br/mercados-financeiros-v-seguro-capitalizacao-e-previdencia-aberta/
- Link: https://investigacaofinanceira.com.br/mercados-financeiros-vi-previdencia-fechada/
- O paper original se encontra disponível em: https://bitcoin.org/bitcoin.pdf. Uma tradução se foi feita pela mesma organização: https://bitcoin.org/files/bitcoin-paper/bitcoin_pt_br.pdf;
- Uma função hash é um algoritmo que mapeia dados de comprimento variável para dados de comprimento fixo. Os valores retornados por uma função hash são chamados valores hash ou códigos hash.
- EUA, Director of Nacional Intelligence, PUBLIC-PRIVATE ANALYTIC EXCHANGE PROGRAM, Risks and Vulnerabilities of Virtual Currency, Cryptocurrency as a Payment Method, 2017, disponível em: https://www.dni.gov/files/PE/Documents/9—2017-AEP_Risks-and-Vulnerabilities-of-Virtual-Currency.pdf.
- KURTZ, Lahis; LORENZO, Florencia; RODRIGUES, Gustavo. A regulação da União Europeia sobre criptomoedas e riscos de lavagem de dinheiro : uma análise crítica da Quinta Diretiva Antilavagem de Dinheiro frente aos provedores de serviços de criptomoeda. Instituto de Referência em Internet e Sociedade: Belo Horizonte, 2020. Disponível em: <https://bit.ly/3cQIHM5>.
- CHAINALYSIS, The 2021 NFT Market Report, 2022. Disponível em: https://go.chainalysis.com/nft-market-report.html.
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