Esta é a última postagem do primeiro ano de vida desse blog.
Quando escrevi o texto inaugural em julho de 2022, eu não sabia se gostaria de experiência. Previa uma cobrança minha por novas publicações, ao mesmo tempo em que o tipo de postagem que eu queria fazer demandava calma e reflexão. Dezessete posts depois, acredito que consegui equacionar esses dois impulsos e escrever algumas coisas legais ao longo desses meses.
Espero que você também tenha gostado.
Para esse último texto do ano, aproveitando que estou de recesso judiciário, resolvi abordar uma das mais recorrentes figuras mitológicas no imaginário popular dos últimos dois séculos, quando se trata do ambiente criminal: o investigador privado. E como ele se encaixa na Investigação Financeira, o tema principal desse blog.
Investigação Financeira é uma metodologia aplicável à atividade de persecução estatal de crimes que geram produto e proveito. Como se disse na postagem inicial desse blog (1), ela se detém sobre assuntos financeiros relacionados à conduta ilícita, intentando identificar e documentar, para fins de prova, o movimento de dinheiro durante o curso da atividade criminal.
Naquela postagem inaugural, reconhecia-se que muitos são os assuntos inter-relacionados à Investigação Financeira: metodologias tradicionais de investigação, funcionamento do mercado financeiro e criptomercado, fenômenos da criminalidade organizada, paraísos fiscais, lavagem de dinheiro e financiamento ao terrorismo, técnicas especiais de investigação, preservação da cadeia de custódia, confisco e sequestro penais, cooperação jurídica internacional e proteção de dados no âmbito criminal.
Não é demérito para o investigador perder o rastro do dinheiro nesse intrincado mundo novo. Existem especialistas em cada um desses assuntos, mas poucos suficientemente versados em todos eles que estejam em posição estatal capaz de seguir o dinheiro. Nesse sentido, posso ter deixado entender que apenas agentes do Estado – membros do Ministério Público, policiais, aditores fiscais etc – faziam Investigação Financeira.
Nada mais longe da verdade e essa postagem trata justamente disso.
Investigação Privada
Em 24 de agosto de 2022, eu tive o privilégio de falar em painel sobre Investigação Defensiva e Cadeia de Custódia em Prova Digital no VI Congresso Internacional Direitos Fundamentais e Processo Penal na Era Digital organizado pelo INTERNETLab (2). Naquela ocasião, disse que para tratar sobre Investigação Defensiva, uma forma de Investigação Privada, seria necessário fixar algumas premissas.
Em primeiro lugar, a investigação é um método técnico de coleta, análise e uso de dados, em atividade guiada pela formulação de hipóteses a partir de evidências, com vistas ao desvendamento de um problema. Dizer que a investigação é um método técnico significa apartar o seu conceito daquele de ciência, destacando também que não é mero improviso. Empirismo, experiência ou o “tirocínio policial”, por si só, não sustenta uma investigação que se afaste dos casos mais banais.
A investigação pode se guiar para a solução de um problema com repercussão cível ou criminal, daí porque se pode classificá-la em investigação cível ou criminal. Sob o ponto de vista de quem a realiza, a investigação poder ser pública ou privada.
A investigação pública é uma dever incontornável dos agentes públicos. O Estado deve investigar, processar e punir condutas ilícitas, cíveis e criminais, em consectário do Direito Fundamental à Segurança, previsto no art. 5º, caput, da Constituição Federal. Esse dever estatal advém do momento histórico em que o Estado assumiu o monopólio da força, atualmente desempenhado pelo Sistema de Justiça – composto por polícias (art. 144, caput, CF), Ministério Público (art. 127 e ss., CF) e Poder Judiciário (art. 92 e ss., CF).
A investigação pública se vale de técnicas de investigação classificadas normalmente em tradicionais e especiais. Algumas técnicas especiais estão disponíveis apenas para investigação pública criminal e/ou para formas específicas de criminalidade, tais como o crime organizado – tratado nesse blog em outra postagem (3).
São técnicas tradicionais de investigação:
→ apreensão de objetos e instrumentos (art. 6º, II, CPP);
→ oitiva de ofendido, testemunhas e investigado (art. 6º, IV e V, e arts. 185 a 225, CPP);
→ reconhecimento de pessoas ou coisas e acareações (art. 6º, VI, e arts. 226 a 230, CPP);
→ exame de corpo de delito e qualquer outra perícia (art. 6º, VI, e arts. 158 a 184, CPP): p. ex., perícia em tecnologia da informação e comunicação;
→ reconstituição de crimes (art. 7º, CPP);
→ requisição da dados e informações cadastrais (dados de base) de vítima ou suspeito a qualquer órgãos público ou empresa privada (art. 13-A, CPP; arts. 15 a 17, Lei ORCRIM; e art. 10, §3º, MCI);
→ prova documental (arts. 231 a 238, CPP);
→ busca e apreensão domiciliar (arts. 240 a 250, CPP).
São técnicas especiais de investigação:
→ colaboração premiada (arts. 4º a 7º, Lei ORCRIM);
→ captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos (art. 8º-A, Lei 9.269/96);
→ ação controlada (arts. 8º e 9º, Lei ORCRIM);
→ acesso a dados telefônicos (art. 3º, IV, Lei ORCRIM e art. 3º, V, Lei n. 9.472/97);
→ acesso a dados telemáticos (art. 7º, III, e art. 10, § 2º, MCI): dados de conteúdo, tráfego e metadados (ex: geofencing). Ato preparatório: ordem de preservação (arts. 13, §2º e 15, §2º);
→ interceptação das comunicações telefônicas (art. 1º, Lei 9.269/96);
→ interceptação das comunicações telemáticas (art. 1º, parágrafo único, Lei 9.269/96): dados de tráfego e conteúdo. A decisão judicial indicará o meio de execução (art. 4º e 5º);
→ afastamento do sigilo financeiro (LC n. 105/01);
→ afastamento do sigilo fiscal (art. 198, § 1º, I, CTN);
→ infiltração policial física e virtual (arts. 10 a 14, Lei ORCRIM; e 190-A a 190-E, ECA): limites fixados na decisão judicial;
Na investigação pública criminal, a vítima do delito pode auxiliar o Estado, fornecendo à autoridade policial ou ao Ministério Público documentos, informações e elementos de convicção, para instruir o inquérito policial (art. 5º, §1º, CPP) ou a representação (art. 27), inclusive requerendo diligências policiais (art. 14, CPP).
Por outro lado, a investigação privada possui características significativamente diversas.
Em primeiro lugar, a investigação privada é caracterizada pela facultatividade, ou seja, ela é orientada pelo princípio da liberdade (art. 5º, II, CF).
Ademais a investigação privada é dotada de maior abrangência temática do que a sua contraparte pública. O problema a ser enfrentado pela investigação privada pode ser um ato jurídico lícito (art. 185, Código Civil), um ato jurídico ilícito com repercussão cível ou criminal (art. 186 a 188, CC), um negócio jurídico cível (art. 104 e ss., CC) ou simplesmente um ato que não tem relevância jurídica mas é importante para o contratante.
Um pai que investiga o namorado da filha, a vítima de um crime (art. 14, CPP), um cônjuge em suspeita, a atividades de compliance das empresas, o desaparecimento de familiar ou animal de estimação etc. São todos exemplos de investigações privadas possíveis que possuem níveis diferentes de repercussão jurídica. Em certa medida, pode-se dizer que também um jornalista (repórter) realiza investigação privada ao coletar informações e realizar entrevistas para subsidiar uma matéria (art. 1º, incisos III e VII, do Decreto n. 83.284/79).
Por fim, a investigação privada não é exclusiva e se orienta pelo livre exercício profissional (art. 5º, XIII, CF: “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”). Em tese, qualquer pessoa maior de 18 anos (dada a necessidade de se responsabilizar por seus atos) pode realizar uma investigação privada, sob sua conta e risco.
O livre exercício profissional foi o motivo de vários vetos do Presidente da República ao projeto de lei que regulamentava a profissão de detetive particular (4). Um dos dispositivos vetados previa, além da capacidade civil, uma formação específica para o exercício da profissão de detetive (“curso de formação profissional de atividade de coleta de dados e informações de interesse privado”). Na mensagem de veto, o Presidente da República destacou: “Ao impor habilitação em curso específico e outros requisitos, o artigo impede o livre exercício da atividade por profissionais de outras áreas, bem como pelos atuais profissionais que não possuam essa habilitação, sem que se caracterize potencial dano social decorrente, violando o art. 5º, inciso XIII da Constituição”.
Como se viu, os investigadores particulares não são apenas os detetives privados. São pais preocupados com os filhos, donos de animais desaparecidos, empregados de empresas que realizam investigações internas etc. No Brasil, existem diversos cursos, em nível técnico e superior, para detetives particulares, mas eles devem ser encarados como oportunidade de aprimoramento das capacidades profissionais, não como pré-requisito para o exercício da profissão.
Profissionais da Investigação Privada
Embora figuras que despertam grande empatia, os investigadores particulares amadores não serão aqui tratados. Igualmente, não serão tratados os profissionais que realizam compliance – a atividade destes possui grande importância para a Investigação Financeira e será tratada em outra ocasião. Daqueles profissionais que trabalham com investigações privadas, somente os detetives particulares serão nessa oportunidade.
O detetive particular é um arquétipo moderno, despertando o fascínio das pessoas, provavelmente, desde 1841, quando Edgar Allan Poe publicou Os Assassinatos da Rua Morgue e nos apresentou ao Chevalier Auguste Dupin. Na literatura, o gênero de histórias de detetive é um dos mais prolíficos e populares desde então. Sherlock Homes de Conan Doyle, Philip Marlowe de Raymond Chandler, Sam Spade de Dashiell Hammett e tantos outros. Ed Mort, o detetive particular brasileiro criado por Luís Fernando Veríssimo, é uma sátira deliciosa de todos eles.
O cinema noir dos anos 1940 são, praticamente, uma ode aos detetives particulares, tal como os westerns foram aos cowboys. Tramas entre a dama com um passado e o detetive sem um futuro (5) fazem sucesso até hoje em filmes (neo noir), séries (ex: Justified da FX e Perry Mason da HBO) e até jogos de videogame (ex: L.A. Noire e The Sinking City).
Essa nobre profissão também possui antepassados históricos. A Agência Nacional de Detetives Pinkerton foi uma agência de investigação e segurança particular fundada nos EUA em 1850 por Allan Pinkerton, detetive que ficou famoso ao frustrar uma conspiração para o assassinato do presidente Abraham Lincoln. A agência também recebeu o crédito pela captura em 1895 daquele considerado o primeiro serial killer americano: H. H. Homes. A agência ainda hoje está em funcionamento e, como tudo que envolve a profissão de detetive particular, adaptou-se às novas tecnologias, prestando serviços a particulares e empresa na área de compliance (6).
No Brasil, o profissional mais famoso é o Detetive Ábacus (7), em atuação desde os anos 1980 e autor de livros sobre a profissão: Metodologias de Investigação Privada (2021) e Casos de Investigação Privada (2018).
A profissão de detetive particular, ou detetive profissional, está regulada pela Lei n. 13.432/17:
Art. 2º Para os fins desta Lei, considera-se detetive particular o profissional que, habitualmente, por conta própria ou na forma de sociedade civil ou empresarial, planeje e execute coleta de dados e informações de natureza não criminal, com conhecimento técnico e utilizando recursos e meios tecnológicos permitidos, visando ao esclarecimento de assuntos de interesse privado do contratante.
Ao destacar que o detetive profissional planeja e executa a coleta de dados, por meio de conhecimento técnico e se valendo e meios tecnológicos permitidos, a Lei brasileira destaca a legalidade dos meios empregados para a coleta dos dados.
A Lei n. 13.432/2017 também esclarece o papel que esse profissional pode desempenhar em uma investigação pública criminal, ao prever que o detetive particular pode colaborar com investigação policial em curso, desde que expressamente autorizado pelo contratante. O aceite da colaboração ficará a critério do Delegado de Polícia, que poderá admiti-la ou rejeitá-la a qualquer tempo (art. 5º). Essa necessidade de dupla autorização (do contratante e da autoridade) também se estende às investigações públicas criminais a cargo do Ministério Público, nos procedimentos investigatórios criminais.
Se o contratante do detetive profissional for a vítima do crime, aplica-se o disposto no Código de Processo Penal, permitindo-lhe fornecer à autoridade policial ou ao Ministério Público documentos, informações e elementos de convicção, para instruir o inquérito policial (art. 5º, §1º, CPP) ou a representação (art. 27), inclusive requerendo diligências policiais (art. 14, CPP).
Mesmo nos casos em que colabora com a investigação pública criminal, o detetive particular está vedado de participar diretamente de diligências policiais (art. 10, IV, Lei n. 13.432/17).
Em razão da natureza reservada de suas atividades, o detetive particular deve agir com técnica, legalidade, honestidade, discrição, zelo e apreço pela verdade (art. 6º), sendo obrigado a registrar em instrumento escrito a prestação de seus serviços (art. 7º). O contrato de prestação de serviços do detetive particular conterá: qualificação completa das partes contratantes; prazo de vigência; natureza do serviço; relação de documentos e dados fornecidos pelo contratante; local em que será prestado o serviço; e estipulação dos honorários e sua forma de pagamento. É facultada às partes a estipulação de seguro de vida em favor do detetive particular, que indicará os beneficiários, quando a atividade envolver risco de morte (art. 8).
Ao final do prazo pactuado para a execução dos serviços profissionais, o detetive particular entregará ao contratante ou a seu representante legal, mediante recibo, relatório circunstanciado sobre os dados e informações coletados, que conterá: os procedimentos técnicos adotados; a conclusão em face do resultado dos trabalhos executados e, se for o caso, a indicação das providências legais a adotar; data, identificação completa do detetive particular e sua assinatura (art. 9º).
Ao detetive particular é vedado por lei: aceitar ou captar serviço que configure ou contribua para a prática de infração penal ou tenha caráter discriminatório; aceitar contrato de quem já tenha detetive particular constituído, salvo com autorização prévia daquele com o qual colaborará ou a quem substituirá, ou na hipótese de dissídio entre o contratante e o profissional precedente ou de omissão deste que possa causar dano ao contratante; e divulgar os meios e os resultados da coleta de dados e informações a que tiver acesso no exercício da profissão, salvo em defesa própria; e utilizar, em demanda contra o contratante, os dados, documentos e informações coletados na execução do contrato (art. 10).
Os detetives particulares devem preservar o sigilo das fontes de informação; respeitar o direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem das pessoas; exercer a profissão com zelo e probidade; defender, com isenção, os direitos e as prerrogativas profissionais, zelando pela própria reputação e a da classe; zelar pela conservação e proteção de documentos, objetos, dados ou informações que lhe forem confiados pelo cliente; restituir, íntegro, ao cliente, findo o contrato ou a pedido, documento ou objeto que lhe tenha sido confiado; e prestar contas ao cliente (art. 11).
Em contrapartida, são direitos do detetive particular exercer a profissão em todo o território nacional na defesa dos direitos ou interesses que lhe forem confiados; recusar serviço que considere imoral, discriminatório ou ilícito; renunciar ao serviço contratado, caso gere risco à sua integridade física ou moral; compensar o montante dos honorários recebidos ou recebê-lo proporcionalmente, de acordo com o período trabalhado, conforme pactuado; reclamar, verbalmente ou por escrito, perante qualquer autoridade, contra a inobservância de preceito de lei, regulamento ou regimento; e ser publicamente desagravado, quando injustamente ofendido no exercício da profissão (art. 12).
Segundo os serviços anunciados pelo Detetive Ábacus em seu site (7), os profissionais brasileiros atuam em casos de infidelidade conjugal; fraudes (documental, substituição de produto, falsidade, pirataria, fraudes contra seguradoras, fraude médica, contábil, etc); produção de dossiê sobre pessoa física ou jurídica, envolvendo a vida pregressa; localização de testemunhas; localização de pessoas desaparecidas; localização de devedores e de seu patrimônio etc.
Investigação Defensiva
Os detetives não são os únicos que podem realizar investigações privadas no Brasil. Em face do direito fundamental ao livre exercício profissional (art. 5º, XIII, CF), qualquer pessoa maior de 18 anos (dada a necessidade de se responsabilizar por seus atos) pode realizar a investigações privadas, sob sua conta e risco.
Dito dessa forma, o termo “investigação defensiva” nada mais é do que aquele cunhado pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – CFOAB para a investigação privada criminal feita por advogado ou por pessoas empregadas por esses (mesmo detetives), em nome do cliente. A partir da edição do Provimento CFOAB n. 188/18 (8), passou-se a se escrever sobre investigação defensiva, muitas vezes sem esclarecer que ela nada mais é do que uma forma da tradicional investigação privada.
Ademais, coletar e analisar dados com vistas a ajudar a defesa de um cliente é consectário lógico do direito fundamental à ampla defesa (art. 5º, LV, CF). A mudança semântica apenas destaca um aspecto da ampla defesa: a possibilidade de coleta, análise e uso da dados em favor do constituinte.
O Provimento CFOAB n. 188/2018 assim dispõe:
Art. 1° Compreende-se por investigação defensiva o complexo de atividades de natureza investigatória desenvolvido pelo advogado, com ou sem assistência de consultor técnico ou outros profissionais legalmente habilitados, em qualquer fase da persecução penal, procedimento ou grau de jurisdição, visando à obtenção de elementos de prova destinados à constituição de acervo probatório lícito, para a tutela de direitos de seu constituinte.
De interessante realmente, o artigo destaca que o advogado pode realizar a investigação privada sozinho ou se valendo de outros profissionais. A atividade cooperativa na investigação privada é reforçada pela norma do parágrafo único do art. 4º: “na realização da investigação defensiva, o advogado poderá valer-se de colaboradores, como detetives particulares, peritos, técnicos e auxiliares de trabalhos de campo”.
A investigação defensiva, tal como aquela desempenhada pelo detetive particular (art. 2º, Lei n. 13.432/17), possui as balizas da legalidade para a produção de provas. Daí porque o art. 1º do Provimento n. 188/18 fala em “constituição de acervo probatório lícito”.
Pelo Provimento n. 188/18, a investigação feita por advogado pode ser realizada na etapa da investigação preliminar (leia-se, no curso da investigação pública criminal), no decorrer da instrução processual em juízo, na fase recursal em qualquer grau, durante a execução penal e, ainda, como medida preparatória para a propositura da revisão criminal ou em seu decorrer (art. 2º).
Essa forma de investigação privada realizada por advogado orienta-se para a produção de prova em pedido de instauração ou trancamento de inquérito, rejeição ou recebimento de denúncia ou queixa, resposta a acusação, pedido de medidas cautelares, defesa em ação penal pública ou privada, razões de recurso, revisão criminal, habeas corpus, proposta de acordo de colaboração premiada, proposta de acordo de leniência e outras medidas destinadas a assegurar os direitos individuais em procedimentos de natureza criminal (art. 3º). Em acréscimo, essa investigação inclui a realização de diligências visando à obtenção de elementos destinados à produção de prova para o oferecimento de queixa, principal ou subsidiária.
O Provimento n. 188/18 diz que o advogado, na condução da investigação defensiva, poderá promover diretamente todas as diligências investigatórias necessárias ao esclarecimento do fato. Em seguida, a norma faz a seguinte exemplificação: colheita de depoimentos, pesquisa e obtenção de dados e informações disponíveis em órgãos públicos ou privados, elaboração de laudos e exames periciais e realização de reconstituições, ressalvadas as hipóteses de reserva de jurisdição (art. 4º).
Esse art. 4º do Provimento n. 188/18 precisa ser lido sob a lente da Constituição da República e no contexto em que se insere a investigação privada, principalmente se entendendo a sua completa diferenciação jurídica em relação à investigação pública.
Nesse sentido, embora a norma diga que o advogado pode colher depoimentos, isso só ocorre sem coercitividade, ou seja, quando o ato contar com a colaboração da pessoa que prestará o depoimento. Não há que se cogitar de depoimento compulsório a advogado, nos termos da condução coercitiva de testemunha para investigação pública. Da mesma forma, o advogado pode realizar reconstituições sem qualquer coercitividade, apenas quando conta com a colaboração dos envolvidos.
A norma do Provimento que trata da possibilidade do advogado realizar pesquisa de dados disponíveis em órgãos públicos, somente se insere na medida em que ele – como, ademais, qualquer cidadão – pode ter acesso a informações públicas na forma da Lei n. 12.527/11, chamada Lei de Acesso a Informações. Os advogados, exercitando investigações privadas, não possuem o poder de requisição de informações concedida pela lei às autoridades policiais, ao Ministério Público e à Defensoria Pública, por exemplo. Da mesma forma, acesso de advogado a base de dados privada somente pode ocorrer com a colaboração da pessoa física ou jurídica, sem qualquer coercitividade.
O Provimento do CFOAB também diz que o advogado pode determinar a elaboração de laudos e exames periciais. Aqui se trata de perícia privada, custeada pela parte e elaborada por profissional por ela escolhido. Tal perícia pode ser juntada aos autos da investigação pública ou do processo judicial, mas ela não se confunde com a perícia oficial – para essa a vítima de um crime pode colaborar nomeando assistente técnico na forma do art. 159, § 3º, do Código de Processo Penal.
Durante a realização da investigação, o advogado deve preservar o sigilo das informações colhidas, a dignidade, privacidade, intimidade e demais direitos e garantias individuais das pessoas envolvidas (art. 5º). O art. 6º do provimento, destacando que a investigação privada é feita para subsidiar os interesses do contratante, afirma que “o advogado e outros profissionais que prestarem assistência na investigação não têm o dever de informar à autoridade competente os fatos investigados”. Eventual comunicação e publicidade do resultado da investigação exigirão expressa autorização do constituinte.
Ao final, o Provimento n. 188/18 cria uma norma controversa: “as atividades descritas neste Provimento são privativas da advocacia, compreendendo-se como ato legítimo de exercício profissional, não podendo receber qualquer tipo de censura ou impedimento pelas autoridades” (art. 7º). Por tudo o que se disso desde o início sobre a investigação privada, a norma é inconstitucional por violação ao livre exercício profissional (art. 5º, XIII, CF). Pode-se argumentar que seria privativo de advogado as atividades jurídicas decorrentes da investigação privada, mas todo o processo investigativo não parece ser quinhão reservado a nenhuma classe profissional.
Limites da Investigação Pública ou Privada
O principal limite da investigação, seja pública ou privada, é a legalidade. Nenhuma investigação é possível se empregado meios ilícitos de prova (art. 5º, inciso LVI, CF). O art. 157 do Código de Processo Penal ainda complementa que as provas ilícitas podem decorrer de violação a normas constitucionais ou legais.
Por envolver a descoberta de fatos, a investigação deve respeitar o direito fundamental à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas (art. 5º, inciso X). Na investigação privada, essa proibição não comporta exceção. Sempre que um fato se inserir dentro da esfera da intimidade lato sensu das pessoas, o investigador privado deve recuar, sob pena de contaminar de ilegalidade a prova obtida.
Na investigação pública, porque voltada à tutela de outro direito fundamental (Direito à Segurança, art. 5º, caput, CF), o conflito com o direito à intimidade das pessoas é resolvido por ponderação, normalmente a partir da conformação legislativa dada às técnicas de investigação pelo legislador ordinário. São essas balizas legais que os investigadores públicos devem observar, quando se deparam com fatos inseridos, em tese, na esfera da intimidade das pessoas.
Para muitos desses casos, inclusive, as normas estabelecem uma garantia adicional, a chamada reserva de jurisdição. Nenhum investigador público ou privado pode acessar determinado tipo de dado (financeiro, fiscal, telemático, telefônico etc.) sem a autorização de um magistrado. Em outra postagem as técnicas especiais de investigação e a reserva de jurisdição serão abordadas.
Outro limite importante às investigações públicas ou privadas é a possibilidade tecnológica de ser realizar a colheita da prova. Há situações em que a prova simplesmente não pode ser colhida porque as ferramentas técnicas e tecnológicas para tanto não são satisfatórias.
Mesmo em casos em que as possibilidades tecnológicas permitem a colheita da prova, é fundamental se demonstrar a sua cadeia de custódia. Na forma da lei processual penal, ela é o conjunto de procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado, para rastrear sua posse e manuseio a partir de seu reconhecimento até o descarte (art. 158-A, CPP). A cadeia de custódia incide sobre a autenticidade e a integralidade da prova e, ambos Estado e particular, tem o dever processual de apresentar prova autêntica. A preservação da cadeia de custódia vale para o Estado e para o particular que resolve fazer investigação.
Notas
- https://investigacaofinanceira.com.br/siga-o-dinheiro/;
- https://congresso.internetlab.org.br/;
- https://investigacaofinanceira.com.br/submundo-dos-mercados-financeiros-iii-crime-organizado/;
- Mensagem de Veto: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/Msg/VEP-109.htm;
- https://www.openculture.com/2014/06/the-5-rules-of-film-noir.html;
- https://pinkerton.com/;
- https://detetiveabacus.com.br/;
- Os provimentos do CFOAB decorrem das atribuições que lhe são conferidas pelo art. 54, V, da Lei n. 8.906/94. https://www.oab.org.br/leisnormas/legislacao/provimentos/188-2018;
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