Investigação Financeira II – Recuperação de Ativos

Investigação Financeira é uma metodologia aplicável à atividade de persecução estatal de crimes que geram produto e proveito. Como se disse na postagem inicial desse blog (1), ela se detém sobre assuntos financeiros relacionados à conduta ilícita, intentando identificar e documentar, para fins de prova, o movimento de dinheiro durante o curso da atividade criminal.

A Investigação Financeira possui os seguintes objetivos:

  • Identificar os produtos e proveitos do crime, rastreando ativos e iniciando o confisco cautelar através de sequestros ou indisponibilidades;
  • Iniciar uma investigação sobre lavagem de dinheiro e financiamento ao terrorismo; e
  • Descortinar a estrutura econômica e financeira da organização criminosa investigada, romper redes de contatos transnacionais e acumular conhecimento sobre eventuais parceiros da empreitada.

Tais objetivos são atividades estatais relacionadas à recuperação de ativos (1º item), à investigação de organização criminosa ou terrorista e os seus mecanismos de lavagem de dinheiro (2º item) e à obtenção de inteligência criminal (3º item).

Dos três objetivos da Investigação Financeira, essa postagem tratará sobre a recuperação de ativos e os modelos adotados no Brasil para tanto. Em outra oportunidade, os demais objetivos serão abordados.

Recuperação de Ativos

O crime não deve compensar. Para crimes graves que geram benefícios econômicos, incumbe ao Estado, tanto quanto a punição dos responsáveis, evitar a fruição dos ganhos oriundos do delito.

Admitir – por inércia, ineficiência dos órgãos estatais ou ausência de institutos jurídicos adequados – a fruição dos lucros ilícitos auferidos contamina a confiança da sociedade na lei, gerando exemplos negativos de conduta bem-sucedida. No longo prazo, a fruição disseminada de lucro auferido com o crime afeta a economia e contamina a atividade política, pondo em xeque até mesmo as fundações da sociedade democrática. Ademais, os ganhos decorrentes de atividades criminosas constituem meios importantes para o financiamento de novos crimes, servindo para perpetuar o desrespeito à lei.

Por isso, cabe ao Estado, através de suas instituições, adotar providências efetivas específicas para alcançar o patrimônio oriundo da (e/ou empregado na) prática de infrações penais também quando a condenação criminal não seja possível. Combater o lucro decorrente do crime independentemente de punir o criminoso com as sanções penais clássicas.

Buscar evitar a fruição dos ganhos decorrentes de atividades criminosas não é propriamente uma mudança de paradigma, porque a punição do criminoso continua a ser primordial e porque a reparação dos danos e o perdimento do proveito da infração são medidas tradicionais do direito penal. Cuida-se, na verdade, de foco em uma nova agenda, paralela, na persecução criminal; uma agenda que enfatiza os efeitos econômicos do delito também como prioridade, ao lado da punição do infrator. Ou seja, uma agenda cuja preocupação não é o criminoso, mas o patrimônio vinculado a atividades criminosas (2).

Recuperação de ativos (asset recovery), para o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (United Nations Office on Drugs and Crime, UNODC), representa o processo de rastreamento, congelamento, confisco e devolução dos bens roubados ao seu país de origem, normalmente envolvendo múltiplas jurisdições e, por vezes, complicado por barreiras técnicas, jurídicas ou políticas (3).

O assunto é tratado no capítulo V (arts. 51 a 59) da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (Convenção de Mérida), impondo aos Estados Partes a adoção de medidas para restringir, apreender, confiscar e devolver os produtos da corrupção (4).

O Banco Mundial e o UNODC mantém a iniciativa STAR (Stolen Asset Recovery Initiative) para estudo do tema, elaboração de publicações e treinamentos de agentes estatais no assunto. Para a iniciativa STAR (5), são etapas do processo de recuperação de ativos:

Colocando de modo mais sistemático para o Direito brasileiro, a recuperação de ativos significa:

  • Investigar o destino dos instrumentos, produtos e proveitos do crime. Essa atividade é denominada investigação patrimonial e explora as principais tipologias de blindagem patrimonial – tais como emprego de empresas de fachada e paraísos fiscais, fenômenos tratados em postagens anteriores (6) (7) –, com o emprego frequente de cooperação jurídica internacional;
  • Manejar medidas cautelares reais para sequestro ou indisponibilidade, também com o emprego frequente de cooperação jurídica internacional;
  • Administrar os bens apreendidos até o confisco definitivo.

Por vezes, no Brasil, denomina-se a recuperação de ativos de Persecução Patrimonial como forma de destacar o protagonismo do Ministério Público e das Polícias Judiciárias nas duas primeiras etapas (investigação patrimonial e manejo dos pedidos de sequestro). O termo, todavia, não confere o devido destaque à terceira etapa (administração de bens), sob incumbência principal do Poder Judiciário.

Estratégias de Recuperação de Ativos

Por sua natureza fluída, própria das investigações financeiras em geral (mesmo aquelas que esquadrinham autoria e materialidade do crime), a recuperação de ativos pode ser realizada através de diversas estratégias, adaptáveis ao caso concreto e aos objetivos principais elegidos pelos órgãos responsáveis por sua condição.

A escolha de uma estratégia de recuperação de ativos em relação a outra significa, invariavelmente, a adoção de ferramentas diversas de investigação patrimonial, cautelares reais e administração de bens, possuindo impacto na efetividade do processo de recuperação de ativos como um todo.

O modelo mais tradicional, efetivo e largamente utilizado é a recuperação de ativos montada sob uma estratégia penal.

Aqui, os institutos de investigação patrimonial são mais amplos, envolvendo ampla gama de técnicas especiais de investigação que não podem ser adotadas em outras esferas de responsabilização, tais como a entrega vigiada, a interceptação das comunicações telefônicas e telemáticas, a infiltração de agentes, a colaboração premiada etc.

Ademais, a estratégia penal conta com formas de confisco mais amplas. Além do confisco tradicional (art. 91, CP), no âmbito de processos criminais é possível lançar mão do confisco pelo equivalente (art. 91, §§ 1º e 2º, CP) e do confisco alargado (art. 91-A, CP), que permitem o atingimento de medidas cautelares reais sobre uma gama muito mais significativa de bens dos envolvidos.

As possibilidades de cooperação jurídica internacional são mais elásticas quando envolvem crimes, em comparação com as possibilidades (quando existentes) de cooperação em matéria penal ou tributária. Basta lembrar que muitos países classificados como paraísos fiscais se recusam a cooperar quando a investigação envolve questões tributárias, mas o fazem quando envolvem organização criminosa e lavagem de dinheiro.

Por fim, a estratégia penal tem a seu favor a experiência e a metodologia de investigação assentada nos mais de cem anos em que o Estado investiga e confisca bens de criminosos desde o período da Lei Seca nos EUA e a cruzada contra Al Capone. No Brasil, a estratégia é bem conhecida e conjugada pelos Grupos de Atuação Especial contra o Crime Organizado – GAECOs, tanto em nível estadual quanto em nível federal, às grandes investigações realizadas.

Em segundo lugar, a recuperação de ativos que configure atos ilícitos cíveis pode ser feita a partir de uma estratégia cível. No Brasil, ela se revela com mais protagonismo naqueles casos que se configuram atos de improbidade administrativa, ensejando as medidas cautelares cíveis (probatórias e reais) e confisco cível.

Em terceiro lugar está a recuperação de ativos feita sob uma estratégia administrativa que representa, normalmente, esforços realizados pelos órgãos fazendários voltados para o adimplemento de crédito tributário e punição da empresa.

Por fim, há a possibilidade de se adotar uma estratégia negociada, em que os infratores se comprometem a devolver os ativos por meio de acordos penais (ex: colaboração premiada e ANPP), acordos cíveis (ex: acordos de leniência e ANPC) e acordos administrativos (ex: parcelamentos tributários).

Estratégias de Recuperação de Ativos Adotadas pelo Ministério Público Federal

A recuperação de ativos está sob escrutínio dos órgãos de coordenação do Ministério Público Federal desde 2014, quando foi constituído um Grupo de Trabalho Intercameral “Medidas Cautelares Reais” das 2ª e 5ª Câmaras de Coordenação e Revisão do MPF (8). O resultado desse trabalho foi a elaboração do Roteiro de Atuação Persecução Patrimonial e Administração de Bens, compilando e sistematizando aexperiência existente sobre a persecução patrimonial no MPF e lançado em 2017 (2).

O Roteiro de Atuação se detém sobre os efeitos econômicos do crime e conceito de persecução patrimonial criminal (Cap. II) e cível (Cap. VI), no Brasil e no exterior (Cap. VII), ao tempo em que sugere uma metodologia para investigação patrimonial (Cap. III) e explora as principais tipologias de blindagem patrimonial (Cap. IV). O documento ainda se aprofunda nos mecanismos de sequestro e indisponibilidade cíveis (Cap. VI) e criminais (Cap. V) e finaliza com medidas de administração de grande sorte de bens passíveis de apreensão judicial (Cap. VIII).

O Roteiro de Atuação trata sobre todos os temas associados à recuperação de ativos (investigação patrimonial, medidas cautelares reais e administração de bens) e é ministrado na forma de curso aos Procuradores da República que ingressam na carreira.

A metodologia de investigação patrimonial exposta no Roteiro de Atuação emula a metodologia da Investigação Financeira e foi baseada em boas práticas internacionalmente aplicadas, envolvendo medidas de afastamento de sigilos e pesquisas em fontes abertas, de bens em geral, numerário, outros valores financeiros (títulos, certificados, apólices, valores mobiliários, derivativos etc.), joias, metais preciosos, gemas e outros bens de luxo, obras de arte, veículos automotores, aeronaves, embarcações, imóveis, semoventes, participações societárias e direitos. Em seguida, o Roteiro de Atuação apresenta subsídios para rastreamento patrimonial em dezenas de países.

Posteriormente, o Conselho Nacional do Ministério Público expediu a Resolução n. 181/2017, regulamentando o Procedimento Investigatório Criminal com capítulo voltado à persecução patrimonial, em grande medida influenciado pelo Roteiro de Atuação do MPF:

CAPÍTULO IV – DA PERSECUÇÃO PATRIMONIAL

Art. 14. A persecução patrimonial voltada à localização de qualquer benefício derivado ou obtido, direta ou indiretamente, da infração penal, ou de bens ou valores lícitos equivalentes, com vistas à propositura de medidas cautelares reais, confisco definitivo e identificação do beneficiário econômico final da conduta, será realizada em anexo autônomo do procedimento investigatório criminal.

§ 1º Proposta a ação penal, a instrução do procedimento tratado no caput poderá prosseguir até que ultimadas as diligências de persecução patrimonial.

§ 2° Caso a investigação sobre a materialidade e autoria da infração penal já esteja concluída, sem que tenha sido iniciada a investigação tratada neste capítulo, procedimento investigatório específico poderá ser instaurado com o objetivo principal de realizar a persecução patrimonial.

Por ter sido lançado em 2017, o Roteiro de Atuação do MPF não tratou de importantes assuntos em matéria de persecução patrimonial surgidos nos últimos anos. Não há no Roteiro orientações sobre a conformação dada pela legislação brasileira ao confisco alargado (art. 91-A, CP), que necessita de demonstração da diferença patrimonial do investigado no momento da denúncia. Também não se desenhou uma investigação patrimonial sumarizada para instrumentalizar os feitos patrimoniais do Acordo de Não Persecução Penal (art. 28-A, CPP) e do Acordo de Não Persecução Cível.

No emprego de ferramentas tecnológicas que permitem maior aprofundamento em rastreio patrimonial, o MPF desenvolveu novas funcionalidades agregadas ao Sistema de Investigação de Movimentações Bancárias – SIMBA para abranger os dados financeiros constantes de todos os mercados financeiros (crédito, câmbio, valores mobiliários, seguros e previdência privados, e previdência fechada), novos arranjos de pagamento (ex: PIX e iniciadores de pagamento), sistemas informáticos de especial interesse à investigação patrimonial, dados fiscais e telemáticos dotados de intersecção estreita com transações financeiras, e operações com criptoativos.

Outra iniciativa do MPF foi a Sistemática de Investigação Fiscal – SIFISCO, que padronizou os pedidos de afastamento de sigilo fiscal em torno de documentos importantes para a investigação patrimonial.

No âmbito das fontes abertas nacionais e internacionais (open-source intelligence, OSINT), bem como na identificação de indícios de blindagem patrimonial, o MPF experimentou maior profissionalização dos setores de pesquisa e análise. Exemplo desse esforço de sistematização é a nova versão do sistema Radar, que congrega de forma mais amigável as bases de dados à disposição do MPF e permitiu salto de qualidade no quesito de rastreio patrimonial.

Também recentemente, a Câmara Criminal do MPF elegeu a Persecução Patrimonial como tema prioritário para o biênio 2022-2023.

Com tudo dito, observa-se que o Ministério Público Federal privilegiou estratégia penal e civil de recuperação de ativos.

Iniciativas do Poder Judiciário em Recuperação de Ativos

O Poder Judiciário não faz, a rigor, persecução patrimonial. Como órgão imparcial, ele delibera sobre os pedidos de medidas cautelares probatórias para acesso a dados sigilosos e medidas cautelares reais para sequestrou ou indisponibilidade.

Para essas atividades, o Poder Judiciário desenvolveu iniciativas importantes para operacionalizar suas ordens, garantindo efetividade à atividade estatal.

Desenvolvido pelo Conselho Nacional de Justiça (9), o Sistema de Busca de Ativos do Poder Judiciário – SISBAJUD possui duas funcionalidades fundamentais para o tema aqui discutido:

  • o módulo para afastamento de sigilo bancário, integrado ao SIMBA do MPF, que também funciona como ferramenta poderosa de efetividade das medidas cautelares probatórias; e.
  • o módulo de bloqueio de valores custodiados por instituições financeiras integrantes do Cadastro de Clientes do Sistema Financeiro Nacional (CCS), tais como bancos comerciais, bancos múltiplos, caixas econômicas, bancos de investimento, sociedades de crédito, financiamento e investimento (financeiras), cooperativas de crédito e instituições de pagamento.

Para além de ativos financeiros, existem outros sistemas do Pode Judiciário de sequestro e/ou indisponibilidade de bens que igualmente obedecem à sistemática de comunicação eletrônica da ordem judicial, tais como o Sistema de Restrições Judiciais sobre Veículos Automotores – RENAJUD, também mantido pelo CNJ (10) e a Central Nacional de Indisponibilidade de Bens – CNIB (11), instituída na forma do Provimento da Corregedoria Geral de Justiça do CNJ n. 39/2014 e operado pela Associação dos Registradores Imobiliários de São Paulo (ARISP).

Há pouco menos de uma semana da data dessa postagem, o CNJ anunciou nova funcionalidade do RENAJUD que permite aos magistrados consultarem informações e imporem restrições sobre a Carteira Nacional de Habilitação (CNH) dos investigados, tal como se fazia sobre os registros de veículos (12).

Ainda que não realize a investigação patrimonial, é importante o Poder Judiciário ter acesso a sistemas que congreguem bases de dados abertas e forneça um quadro de análise claro. Esse parece ser o caso do Sistema Nacional de Investigação Patrimonial e Recuperação de Ativos – SNIPER (13), que promete uma investigação patrimonial centralizada e unificada. O sistema procura resolver um dos principais gargalos processuais: a execução e o cumprimento de sentença, especialmente quando envolvem o pagamento de dívidas, devido à dificuldade de localizar bens e ativos. Embora pensado para execuções de dívidas trabalhistas e cíveis, é inegável que uma ferramenta como o SNIPER representa um salto de qualidade para o Poder Judiciário no processo de recuperação de ativo que envolva estratégias penais.

Na recuperação de ativos, o protagonismo do Poder Judiciário no Brasil ocorre na fase final, quando precisa administrar provisoriamente os bens apreendidos até o confisco definitivo, que ocorre com o trânsito em julgado da sentença condenatória. Como esse processo judicial pode demorar muitos anos, o Poder Judiciário precisa se preparar para cuidar dos bens por ele apreendidos.

Nesse sentido, o Poder Judiciário possui algumas iniciativas que dizem respeito ao processo de administração provisória de bens que lhe é próprio.

O Sistema Nacional de Bens Apreendidos – SBNA do Conselho Nacional de Justiça, criado na forma da Resolução n. 63, de 16 de dezembro de 2008, consolida as informações sobre os bens apreendidos em procedimentos criminais em todo o território nacional, permitindo um melhor controle dos processos e bens pelos órgãos judiciais. Essa ferramenta está em vias de ser substituída pelo Sistema de Gestão de Bens – Sisbemjud que rastreará desde o registro do bem judicializado até a sua destinação final, com controle do cadastro e histórico de sua movimentação (14).

Na mesma ocasião em que anunciou as novas funcionalidades do RENAJUD (12), o CNJ também revelou o desenvolvimento de sistema de leilão para bens apreendidos. A principal preocupação é com veículos automotores apreendidos e sua rápida depreciação econômica, mas tal sistema contribui sobremaneira com a efetivação do instituto da alienação antecipada de bens apreendidos (art. 144-A, CPP), fundamental para a boa administração de bens em um processo de recuperação de ativos.

Estratégias de Recuperação de Ativos do CIRA

CIRA é a sigla para Comitê lnterinstitucional de Recuperação de Ativos, órgão colegiado estadual, composto, normalmente, por Ministério Público Estadual, Secretaria da Fazenda Estadual, Polícia Civil e Procuradoria do Estado. Inaugurado em Estado de Minas Gerais em maio de 2007, o seu modelo foi copiado rapidamente por diversos estados da federação brasileira (15).

Apesar de o CIRA ser inovador no Brasil, sua forma de atuação segue modelo que, por décadas, vem sem recomendado por instituições internacionais, qual seja: usar informações de inteligência para se fazer um raio-X da arrecadação tributária e da conformidade tributária para então realizar uma seleção qualificada de alvos, de forma que se tenha, com o menor custo administrativo possível, a maior conformidade globalmente alcançável.

Em outras palavras, a grande novidade do CIRA é articular todas as estratégias de recuperação de ativos (penal, civil, administrativa e negocial) relacionadas a crimes contra a ordem tributária, lavagem de dinheiro e demais crimes conexos.

Embora em seu ato de constituição – alguns CIRAs são criados por lei estadual, outros por decreto e até por acordo de cooperação técnica – a estrutura básica se mantém praticamente a mesma em todos os comitês criados no Brasil.

Na Paraíba, por exemplo, o CIRA foi formalizado pela Lei n. 11.197, de 13 de setembro de 2018 (16), embora funcione desde 2013, tendo por finalidade de propor, pelos órgãos e instituições públicas que o integram, medidas judiciais e administrativas para o aprimoramento das ações preventivas e de efetividade na recuperação de ativos públicos (art. 1º). Sua competência tem natureza subsidiária em relação à atuação dos órgãos e instituições públicas que o integram, respeitadas a autonomia, a competência e as deliberações de cada órgão e instituição no âmbito de sua atuação.

O CIRA paraibano é um colegiado de quatro membros: Procurador-Geral de Justiça, Procurador-Geral do Estado, Secretário de Estado da Fazenda e Secretário de Estado da Segurança e da Defesa Social (art. 4º).As autoridades podem indicar representantes para compor o CIRA, sendo o que normalmente ocorre.

Compete ao CIRA (art. 3º):

  • Propor medidas técnicas, legais e administrativas, visando à recuperação de ativos suprimidos ou reduzidos em decorrência de ilícitos tributários, administrativos e penais;
  • Promover e incentivar a prevenção e repressão aos crimes contra a ordem tributária, lavagem de dinheiro e demais crimes conexos, com enfoque na recuperação de ativos;
  • Incentivar o desenvolvimento de ações operacionais integradas entre os órgãos e instituições envolvidas, respeitado o planejamento de cada uma delas;
  • Promover, apoiar e participar de encontros, seminários e cursos relacionados à atividade do CIRA, visando à valorização e o aperfeiçoamento técnico de agentes públicos;
  • Propor medidas estratégicas e técnicas que visem ao aprimoramento da legislação aplicável, bem como dos mecanismos administrativos, gerenciais e judiciais no âmbito de cada órgão e instituição que o integra;
  • Resguardar o banco de dados obtido em razão de disponibilização de informações por parte dos órgãos integrantes do Comitê, o qual será de uso exclusivo dos seus integrantes, proibido o seu encaminhamento para qualquer órgão, entidade ou pessoa física ou jurídica alheios ao CIRA, salvo por determinação judicial;
  • Exercer outras atividades inerentes à sua finalidade.

As demandas do CIRA serão decorrentes de encaminhamentos efetuados pelos servidores integrantes de cada órgão que o compõe e endereçadas ao seu representante no Comitê, o qual submeterá a proposta de ação ao Colegiado para deliberação. As deliberações do CIRA dependerão de aprovação da maioria do Colegiado.

O CIRA poderá solicitar planos de ação a serem elaborados e implementados pelos órgãos e instituições com representação no Comitê, em suas respectivas áreas de atuação, cujo cumprimento e avaliação de resultados serão por ele acompanhados.

Originalmente, a lei estadual previa um Fundo de Investimento Permanente para a Recuperação de Ativos, com objetivo de garantir aos órgãos e instituições públicas que integram o CIRA recursos prioritários para a realização de suas atividades. Todavia, o Fundo foi revogado pela Lei Estadual nº 12.147/21.

O sucesso do modelo de CIRA pode ser medido em números com inúmeras reportagens publicadas sobre o recursos recuperados. Apenas na Paraíba, um dos menores estados da federação brasileira, foram R$ 219 milhões (17).

Embora bem-sucedido e agregador de todas as estratégias referidas (penal, cível, administrativa e negocial), o modelo de recuperação de ativos por meio do CIRA possui problemas quando enfrenta casos de fraude fiscal estruturada.

Fraude Fiscal Estruturada e Crime Organizado

A postagem anterior deste blog sobre o Crime Organizado possui mensagem clara: à luz da Investigação Financeira, o crime organizado atua como uma empresa legítima na necessidade de manter e expandir a sua fatia de mercado, respondendo às necessidades e demandas dos fornecedores, consumidores, reguladores e competidores (18).

Nesse sentido, lá se fez uma comparação com o conceito de empresário previsto em lei. O Código Civil Brasileiro define empresário como aquele que “exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção e circulação de bens ou de serviços” (art. 966). A partir daí, os civilistas extraem a conclusão de que empresa é atividade organizada para a produção e circulação de bens ou serviços. Afora a ressalva de que o crime organizado utiliza métodos ilícitos e violentos para a consecução de seus objetivos, ele também é uma atividade organizada para a produção e circulação de bens e serviços.

Naquela ocasião, também lembrei a advertência de Marcelo Mendroni no sentido de que qualquer estratégia estatal de enfrentamento da criminalidade organizada deve se orientar por sua análise econômica, com vistas a conhecer de quais atividades provém os seus rendimentos e, a partir de então, promover estratégias de atuação da Justiça. Como destaquei em outra publicação, uma das formas mais eficazes de combater as atividades ilícitas do crime organizado é por meio de medidas cautelares de sequestro bens, desidratando suas fontes de recursos (19).

Sob a abordagem empresarial de crime organizado, três são conceitos centrais para sua configuração: a atividade deve ser racionalmente planejada; voltada para a provisão de bens e serviços ilícitos; e assegurada pelo emprego de violência (física ou psicológica) ou pela corrupção de funcionários públicos.

Como fornecedores de produtos e serviços ilícitos, os criminosos organizados, normalmente, cometem crimes principais e secundários no dia a dia da empreitada. Os crimes principais são a atividade empresarial da organização destinada à obtenção de proveitos em grande escala (ex: tráfico de pessoas, contrabando de pessoas, tráfico de drogas, tráfico de armas e tráfico de bens ambientais).

Ao lado dos crimes principais que originam suas rendas principais, as organizações também se dedicam a crimes secundários, chamadas atividades facilitadoras, que visam dar suporte às atividades principais. O crime secundário mais importante é a lavagem de dinheiro. Em toda organização criminosa se verifica a existência estruturas montadas para a lavagem dos produtos e proveitos dos crimes principais.

Outra atividade (normalmente) secundária que merece atenção no contexto da Investigação Financeira são os crimes tributários. Como anota Marcelo Mendroni, há enorme quantidade de dinheiro obtido através de atividades ilícitas, sem declaração aos órgãos fazendários, pagamento de impostos ou registro contábil. Esse dinheiro pode ser reinvestimento, por meio de técnicas de lavagem de dinheiro, em atividades aparentemente lícitas sob o comando da organização criminosa. Os negócios injetados de capital ilícito assumem desproporcional poder de competitividade, gerando conquista de mercados, eliminação de concorrentes, formação de monopólio econômico com eventuais formações de cartéis (20).

É possível, todavia, que o crime tributário não seja acessório das atividades ilícitas, assumindo ele a centralidade da organização criminosa, dele se extraindo a maior parte dos recursos. Em cada caso específico, os investigadores precisam identificar se os crimes tributários praticados pela organização são atividades facilitadoras (crimes secundários) ou se representam a atividade principal daquela organização criminosa.

Nesse sentido, a fraude fiscal estruturada deve ser entendida como uma atividade criminosa racionalmente planejada e voltada (como atividade principal ou secundária) para a provisão de bens ou serviços ilícitos que, por sua vez, refinanciam a atividade e enriquecem os empresários do crime. Fraudes fiscais estruturadas quase sempre são asseguradas pela corrupção de funcionários públicos.

A esse respeito, Fernanda Regina Vilares e Matheus Carneiro Assunção (21) anotam que vem sendo observada uma mudança de comportamento dos sonegadores. Se antes a estratégia comum era omitir informações aos órgãos de administração tributária e efetuar operações comerciais por vias informais, a tecnologia, informatização e a possibilidade de cruzamento de dados em tempo real serve como desincentivo. Passou a ser habitual, então, a estratégia de declarar os dados relativos aos fatos geradores, mas utilizar estruturas de blindagem patrimonial com o escopo de inviabilizar a cobrança da dívida tributária que surge da natural incidência da norma. Todo o estratagema envolvido no planejamento com o objetivo de se furtar ao cumprimento das obrigações tributárias tem sido denominado de fraude fiscal estruturada.

De acordo com o Protocolo ICMS nº 66/09 do Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ),

Entende-se por fraude fiscal estruturada a de natureza penal tributária, cujas principais características são as seguintes:

a) estruturadas através de mecanismos complexos;

b) perpetradas por grupos especialmente organizados para tais fins (organizações criminosas);

c) operacionalizada com o emprego de diversos artifícios como dissimulação de atos e negócios, utilização de interpostas pessoas, falsificação de documentos, simulação de operações, blindagem patrimonial, operações artificiosas sem fundamentação econômica, utilização de paraísos fiscais, utilização abusiva de benefícios fiscais, utilização de empresas sem atividade econômica de fato para absorver eventuais responsabilizações, etc.;

Desse conceito, extrai-se que a fraude fiscal estruturada é atividade de organização criminosa, vale-se de mecanismos para obscurecimento do beneficiário final e de empresas de fachada (blindagem patrimonial), além de adotar por prática a remessa de recursos para paraísos fiscais.

Esteja ela configurada como atividade principal ou secundária da Orcrim, a fraude fiscal estruturada envolve o cometimento de crimes contra a ordem tributária municipal, estadual e/ou federal, associados à lavagem de dinheiro interna e/ou internacional. É justamente esse aspecto de transversalidade de crimes entre tributos municipais, estaduais e federais e a característica da transnacionalidade que representa os maiores desafios do modelo de recuperação de ativos por meio de CIRA.

Problemas para o Modelo de CIRA

Problema 1: Necessidade de Uso Primordial da Estratégia Penal

Não se combate organizações criminosas, especialmente atacando suas principais fontes de receita, sem o emprego de institutos de Direito Penal, notadamente as medidas cautelares pessoais e confiscos pelo equivalente e alargado. Prisões e amplos confiscos estão na cartilha de todas as entidades de persecução patrimonial mundo afora. Nenhuma delas pôde se dar ao luxo de empregar apenas institutos civis, administrativos ou negociais. Não por outro motivo, o modelo adotado primeiramente pelo MPF para a recuperação de ativos foi a estratégia penal.

Em face de organizações criminosas que empregam fraude fiscal estruturada, as estratégias de atuação do CIRA precisam privilegiar, sempre que possível, os institutos de Direito Penal. Para tanto, um dos seus membros, o Ministério Público estadual, possui em seus quadros, grupos especializados em manejo de estratégias penais em recuperação de ativos, os GAECOs.

Ainda que outras estratégias de recuperação de ativos se mostrem mais efetivas sob o aspecto arrecadatório, quando se trata de crime organizado é temerário não se utilizar as ferramentas penais dadas pelo Estado para enfrentar o fenômeno. Combater o crime organizado, com prisões e amplos confiscos, é socialmente mais importante do que arrecadar mais.

Problema 2: Transversalidade dos Crimes Tributários

O empresário do crime normalmente não tem pudores de empregar fraude fiscal apenas em relação a certas espécies de tributos. A atividade, quase sempre, atinge também a sonegação de tributos municipais, estaduais e federais.

Os CIRAS foram compostos no âmbito estadual, com ampla atribuição para tratar sobre os crimes que envolvam tributos estaduais e municipais, mas é necessário sopesar a existência provável de crimes contra a ordem tributária cometidos em face de tributos federais, ensejando a competência federal de parte da investigação.

Em se verificando, no curso da investigação, a ocorrência de crimes federais, quanto mais cedo se fizer a interlocução com o MPF e com a Receita Federal do Brasil, para que esses possam se integrar às estratégias de recuperação de ativos, melhor para a efetividade de todo o processo. Atacar organizações criminosas nas esferas federal e estadual é comprovadamente uma boa prática de sufocamento da atividade ilícita.

Problema 3: Internacionalidade da Blindagem Patrimonial

Por fim, a lavagem dos produtos e proveitos do crime pode envolver remessa de recursos para fora do país, normalmente para paraísos fiscais – em fenômeno já explorado em postagem anterior desse blog (6). Nesse contexto, novos crimes federais podem surgir, como o de evasão de divisas.

A internacionalidade, ainda que não represente a ocorrência imediata de crimes federais, demanda uma atividade profissional de rastreio patrimonial no exterior. Esse rastreio pode ser feito, em poucos casos, por meio de fontes abertas, mas o cenário comum é que seja necessário buscar provas em outras jurisdições internacionais, demandando por cooperação jurídica internacional.

Perspectivas para a Recuperação de Ativos no Brasil

Não é sempre que podemos dizer que as perspectivas sobre Justiça Penal no Brasil são boas, mas no caso da recuperação de ativos, penso que o futuro é promissor.

Recentemente, a Câmara Criminal do MPF anunciou que montou grupo de trabalho para analisar a possibilidade de criação de um CIRA FEDERAL, replicando a experiência estadual em âmbito federal com os órgãos congêneres.

A iniciativa está de acordo com aquela resposta estatal defendida por Fernanda Regina Vilares e Matheus Carneiro Assunção (21): não há saída fora da cooperação interinstitucional no combate à fraude fiscal estruturada praticada por organizações criminosas.

Notas

  1. https://investigacaofinanceira.com.br/siga-o-dinheiro/;
  2. Brasil. Ministério Público Federal. Câmara de Coordenação e Revisão, 2. Roteiro de atuação: persecução patrimonial e administração de bens, p. 9;
  3. https://www.unodc.org/unodc/en/corruption/asset-recovery.html;
  4. Disponível em: https://track.unodc.org/track/en/resources-by-UNCAC-chapter/chapter-V_asset-recovery.html e https://track.unodc.org/;
  5. Disponível em: https://star.worldbank.org/focus-area/asset-recovery-process;
  6. https://investigacaofinanceira.com.br/submundo-dos-mercados-financeiros-i-paraisos-fiscais/;
  7. https://investigacaofinanceira.com.br/submundo-dos-mercados-financeiros-ii-empresas-de-fachada/;
  8. O GT Medida Cautelares Reais foi instituído pela Portaria 2ª Câmara Nº 159, de 3 de dezembro de 2014, publicada no DMPF-e – EXTRAJUDICIAL de 05/12/2014, Página 17;
  9. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/sistemas/sisbajud/;
  10. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/sistemas/renajud-4/;
  11. Disponível em: https://www.indisponibilidade.org.br/autenticacao/;
  12. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/novo-renajud-possibilitara-bloqueio-on-line-da-carteira-de-motorista/;
  13. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/tecnologia-da-informacao-e-comunicacao/justica-4-0/sniper/;
  14. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/ferramenta-de-gestao-de-bens-apreendidos-ira-permitir-rastreamento-ponta-a-ponta/;
  15. A Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital – FENAFISCO mantém página com a legislação de criação de todos os CIRAs criados no Brasil: https://fenafisco.org.br/cira/;
  16. Disponível em: https://www.sefaz.pb.gov.br/legislacao/64-leis/icms/6171-lei-n-11-197-de-13-de-setembro-de-2018;
  17. Disponível em: https://www.mppb.mp.br/index.php/90-noticias/ordem-tributaria/24633-cira-completa-4-anos-e-realiza-evento-de-comemoracao-na-proxima-terca-feira;
  18. https://investigacaofinanceira.com.br/submundo-dos-mercados-financeiros-iii-crime-organizado/;
  19. MARTINS, T. M. J. Investigação Patrimonial para Recuperação de Ativos e Medidas Cautelares na Desidratação do Crime Organizado In: Temas Atuais do Ministério Público Federal.4ª ed.Salvador: Juspodium, 2016, v.1, p. 891-912;
  20. MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime Organizado, 5ª ed., Ed. Atlas, p. 55/56.
  21. VILARES, Fernanda Regina Vilares. ASSUNÇÃO, Matheus Carneiro. Cooperação interinstitucional e combate à fraude fiscal estruturada, Revista da PGFN / Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional v. 11, n. 1 (jan./jun.2021), disponível em: https://www.gov.br/pgfn/pt-br/central-de-conteudo/publicacoes/revista-da-pgfn;

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