Recentemente esse blog recebeu publicação sobre um dos aspectos enciclopédicos do submundo dos mercados financeiros, a influência do crime organizado (1). Naquela ocasião, adiantou-se que os mercados ilícitos e os grupos criminosos nacionais seriam abordados em outra ocasião.
Esta é o acerto de contas com aquela promessa.
O crime organizado no Brasil se particulariza menos pela exploração de mercados ilegais específicos e mais pela forma como se formata as principais organizações criminosas nacionais. Conhecer a variante brasileira do fenômeno é fundamental para a formulação de estratégias de enfrentamento, tanto em nível de políticas públicas quanto em investigações criminais.
Mercados Ilícitos Explorados pelo Crime Organizado no Brasil
Sob o ponto de vista dos mercados ilícitos, o Índice Global de Crime Organizado (2) indica que os grupos brasileiros possuem participação importante no tráfico de pessoas, armas, drogas (especialmente, cocaína e maconha) e bens ambientais.
No tráfico de pessoas, o Brasil é país de origem, trânsito e destino de vítimas na América Latina, Caribe, África e China. Cidadãos nacionais são vítimas de tráfico interno e externo, especialmente para Espanha, Portugal e Estados Unidos. Embora raramente relatados, a exploração sexual e laboral, adoções internacionais ilegais e tráfico de órgãos também foram registrados. Os perpetradores desses crimes geralmente são parentes ou amigos das vítimas, contratados por redes agrícolas, industriais ou de trabalho sexual.
Em menor grau, o Brasil também registrou casos de contrabando de pessoas, sobretudo devido às circunstâncias socioeconômicas e políticas na América Latina, que geraram fluxos migratórios crescentes com a chegada de bolivianos, venezuelanos, peruanos e haitianos. Os estados do Norte do país foram afetados durante o êxodo venezuelano por rotas irregulares de entrada e falsificação de documentos por contrabandistas (coiotes). O Brasil também é país de trânsito para cubanos e haitianos, além de país de origem para quem viaja para os EUA. Redes de contrabando da África, Oriente Médio e Ásia foram recentemente desmanteladas.
No tráfico de armas, o Brasil é um dos maiores produtores e exportadores de armas pequenas. Muitas dessas armas são traficadas por rotas com o Paraguai, Estados Unidos, Bolívia, Venezuela, Colômbia e Uruguai. Armas de alto calibre provenientes de mercados legais dos EUA e traficadas via Paraguai ou diretamente para o Brasil são usadas pelas facções do crime organizado e milícias. Também se documentou que o Brasil é exportador de armas ilegais, inclusive para o Iêmen, e que seus portos aéreos e marítimos são altamente vulneráveis ao tráfico de armas.
Além do tráfico internacional, há preocupação com um tráfico interno de armas de fogo, favorecido por um crescente acesso civil a armas de fogo a partir de 2019. Armas de propriedade civil, muitas vezes, não são registradas corretamente e o rastreio das munições não possui transparência ou efetividade. Segundo dados do InSight Crime (3), existem aproximadamente 8,5 milhões de armas de fogo em circulação no Brasil. Estima-se que cerca de 3,8 estejam nas mãos de criminosos e 6,8 milhões de armas estão legalmente registradas para estarem nas mãos de policiais, empresas de segurança privada e cidadãos com licença de porte.
É de conhecimento geral que o tráfico de drogas é o mais importante mercado criminal nacional e que o comércio de cocaína é um dos maiores do mundo. Ela provém principalmente dos países andinos e segue para a Europa, Oriente Médio, África e Oceania, não sem que boa parte se destine ao mercado interno.
O World Drug Report 2022 (4) do UNODC revela que as principais rotas de cocaína continuam a fluir dos Andes para a América do Norte e Europa Ocidental e Central, passando pelo Brasil. Entre 2016-2020, a maior parte do tráfico mundial de cocaína no período ocorreu por rotas bem conhecidas: a) da Colômbia ao longo da costa do Pacífico até a América Central e/ou México, muitas vezes por navio ou embarcação semissubmersível, para os Estados Unidos; b) de região andina (principalmente Colômbia) para oeste e Europa Central de barco, muitas vezes em contêineres; c) diretamente sobre o Atlântico para portos de destino na Europa para tráfico subsequente aos destinos finais; ou d) pelo Brasil para a Europa, seja pelo Atlântico ou pela África Ocidental.
O mesmo relatório indica o crescente tráfico de cocaína no mar, pois a quantidade de droga apreendida aumentou de 84% em 2015-2018 para 89% em 2021. Em 2020 se observou uma queda da rota marítima quando o tráfico de cocaína por empresas privadas de aeronaves aumentou notavelmente na América Latina para superar as medidas de restrição da Covid-19.
Pontos de partida importantes para o transporte de cocaína da América do Sul por mar incluem os portos marítimos do Pacífico de Buenaventura, Colômbia, e Guayaquil, Equador, e os portos marítimos atlânticos de Cartagena, Colômbia, e o Porto de Santos, maior porto do Brasil. Alguns portos menores no norte do Brasil também assumiram importância crescente para os carregamentos de cocaína para a Europa nos últimos anos, quando os traficantes tentam evitar controles aprimorados e capacidade de vigilância implantado no Porto de Santos.
O Brasil também possui o maior mercado de maconha da América Latina. Embora alguns atores também vendam cocaína, as duas drogas têm circuitos separados da classe média e da elite. O Brasil costumava produzir grande parte de sua cannabis, mas com o aumento do consumo o Paraguai se tornou o principal fornecedor. São Paulo e Rio de Janeiro são centros de consumo de maconha importada, enquanto a maconha colombiana também é comercializada na região Norte.
Embora o consumo de heroína seja escasso no Brasil, apreensões ocasionais indicam que o país é usado como um país de trânsito, com atores estrangeiros liderando as transações.
O mercado de drogas sintéticas não é predominante e o uso permanece limitado às classes média-alta e de elite, embora o World Drug Report 2022 do UNODC tenha reconhecido uma tendência no país do surgimento de papéis (“selos”) borrados com novas substâncias psicoativas com efeitos alucinógenos.
Um dos mercados mais importantes para o crime organizado brasileiro, ainda carente de estudos mais profundos, envolve o tráfico de bens ambientais.
A extração ilegal de madeira e a biopirataria, facilitadas pela corrupção, são significativas no Brasil. Na Amazônia e na Mata Atlântica, a biopirataria envolve cientistas, empresas farmacêuticas e a indústria alimentícia. A maior parte da madeira exportada da Amazônia é de origem ilegal, com exportações destinadas principalmente aos Estados Unidos, França, Espanha, Holanda, Portugal, Japão e Reino Unido. A extração, que muitas vezes é seguida pela criação de gado, envolve atividades paralelas de apoio e grandes redes criminosas, com empresas legais também se envolvendo em práticas irregulares. Os criminosos da Amazônia são responsáveis por assassinatos e violência, principalmente de/para indígenas, ativistas e autoridades.
Um boom na mineração ilegal de ouro amazônico depende de mineradores de pequena escala e redes criminosas maiores. O mercado ilegal de esmeraldas, topázios imperiais e diamantes também é expressivo, sendo estes últimos comercializados na França, Suíça e Itália. O Brasil é um país de trânsito para ouro e diamantes, ligando a Venezuela e a Guiana Francesa. O ouro venezuelano às vezes é legalizado no Brasil e exportado para a Índia e os Emirados Árabes Unidos.
O Brasil é também uma das principais origens do comércio ilegal de fauna, principalmente de aves. O enfrentamento de crimes contra a flora e a fauna no Brasil não é convidativo em decorrência de penas extremamente baixas. Por exemplo, tome-se a história de um traficante de pássaros da Paraíba, flagrado quinze vezes pelo IBAMA entre 1996 e 2018 com mais de 3.700 espécimes destinadas ao abastecimento do mercado ilegal de animais silvestres — contabilizando os animais não apreendidos, estima-se que o número de espécimes traficados por ele atinja 370 mil.
Em todas as ocasiões, por se tratar de crime de menor potencial ofensivo, o criminoso assinava um termo circunstanciado de ocorrência e era colocado em liberdade. Mesmo as sanções administrativas eram ineficientes para cessar o tráfico de animais, pois somadas todas as multas fixadas, a quantia devida pelo traficante ultrapassava R$ 9 milhões, sem nenhum pagamento. O criminoso somente foi parado quando a investigação se desviou dos crimes ambientais e focou na lavagem de dinheiro dos produtos e proveitos auferidos pela atividade ilícita. Pela lavagem de dinheiro, o traficante foi sentenciado a 12 anos de prisão e teve confiscados os seus bens (5).
Fora aqueles apresentados pelo Índice Global de Crime Organizado, há um criminal market que, talvez, caracterize melhor o crime organizado no Brasil: a corrupção (corrupção ativa e passiva, peculato, desvio de recursos públicos, crimes licitatórios, concussão etc).
O desvio de recursos públicos é provavelmente o mais rentável mercado ilícito das organizações criminosas no Brasil e os dados são facilmente verificáveis a partir do Índice de Percepção da Corrupção – IPC da Transparência Internacional (6). Em uma escala de cem pontos, o IPC atribui ao Brasil apenas 38, o terceiro pior resultado da série histórica e abaixo da media global (43) desde os anos de 2012. Segundo a Transparência Internacional, os dados do IPC mostram que o Brasil está estagnado, sem avanços significativos no enfrentamento da corrupção no período. Os retrocessos na agenda anticorrupção nacional são documentados pela Transparência Internacional em estudos anuais (7).
Um dos principais fatores de perpetuação da corrupção no Brasil é a impunidade dos agentes. Em 2016, a Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU), em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, realizou pesquisa empírica no sistema de justiça federal (8). As pesquisas empíricas demonstram que o crime não surge apenas a partir de agentes externos ao Estado, mas pode perfeitamente se originar em condutas adotadas por atores públicos no interior de estruturas governamentais, muitas vezes em conluio com agentes privados, com o objetivo de desviar recursos públicos.
Esse crime organizado formado no interior das burocracias, caracterizado por relações de cooperação entre agentes públicos e atores privados para o desvio de verbas públicas, recebe o nome de crime organizado endógeno. Joama Cristina Almeida Dantas (9) anota que o crime organizado endógeno ocupa espaço ainda tímido na agenda das pesquisas acadêmicas, sendo escassas as referências à aparição de organizações criminosas em cooperação com o Estado. Nesse crime organizado “de dentro pra fora”, ocupantes de cargos eletivos tomam proveito dos serviços do crime organizado a fim de prosseguir no poder ou montam estruturas de comando no interior da administração pública, que se voltam para a prática de fraudes em licitações, desvios de recursos públicos, superfaturamento de obras, entre outras práticas de corrupção (10).
O mercado de contratações públicas através de licitações representa aquele mais suscetível a esse tipo de criminalidade organizada. O setor de licitação de um órgão público é um dos mais atrativo aos agentes da criminalidade organizada endógena, por possibilitar o desvio de verbas públicas através do estabelecimento de uma relação transacional com agentes privados, maximizando os benefícios da atuação criminosa e diminuindo os seus riscos. É nesse setor da burocracia pública que a atuação criminosa pode ser acobertada por diversas fraudes e se desenvolver no campo da invisibilidade, podendo os agentes conferir aparência de licitude ao procedimento licitatório fraudado (11).
Dentre as ilegalidades compiladas por Joama Dantas estão:
- inexistência física ou ausência de estrutura administrativa e/ou operacional de empresas licitantes;
- constituição forjada, detectada em razão da ausência de registro das empresas na Junta Comercial do Estado;
- montagem das propostas apresentadas nas licitações;
- desvio de recursos evidenciado na emissão de cheques ao próprio município emitente ou à pessoa física do Prefeito, e por meio dos endossos apostos no verso dos cheques pelas empresas contratadas em favor de empresas relacionadas com o esquema de fraude;
- emissão de notas fiscais inidôneas ou irregulares;
- abandono de grande parte das obras, e continuidade das mesmas com pessoal contratado pelos municípios, sem qualquer vínculo com a empresa inicialmente contratada;
- realização das obras com materiais inferiores, tanto em qualidade quanto em quantidade.
Ademais, os vícios escondem-se nos interstícios das etapas do procedimento licitatório, resultando na montagem de concorrências públicas, com ares de legalidade. A simulação tem início com a nomeação de uma comissão de licitação composta por agentes públicos envolvidos no esquema, a qual monta o processo licitatório. Participam do certame empresas previamente acertadas, que apresentam propostas perdedoras a fim de legitimar a adjudicação do objeto licitado por uma das empresas fraudadoras.
Organizações Criminosas Nacionais
Facções
Facção é o nome dado no Brasil às organizações criminosas formadas em torno de presos ou egressos do sistema penitenciário que exploram, com violência e corrupção, o mercado ilícito do tráfico de drogas. Inicialmente, elas dominaram territórios nas comunidades periféricas de Rio de Janeiro e São Paulo, para em seguida migrarem para outros estados e firmarem parcerias com outros grupos criminosos internacionais.
A primeira das facções nacionais foi o Comando Vermelho – CV, originada no interior do Instituto Penal Cândido Mendes, vulgo Caldeirão do Diabo, em Ilha Grande, RJ, em 1979. Ela foi o produto da interação entre presos políticos da ditadura militar e presos comuns, principalmente assaltantes de banco. Em seu início, o CV visava a proteção dos presos enquanto classe, fortalecendo suas posições para alcançar objetivos rotineiros do cárcere ou o objetivo final (liberdade ou fuga). Aqueles que fossem soltos, manteriam o compromisso de ajudar os companheiros que ficaram no presídio por meio de uma contribuição pecuniária (“caixinha”).
No início da década de 1980, com parte de seus fundadores fora do presídio, o CV se consolidou como a principal facção criminosa do país, dominando cerca de 90% dos pontos de venda de drogas nas favelas do Rio de Janeiro (12).
A segunda geração do Comando Vermelho, atualmente no comando da facção, é formada por criminosos muito distantes da concepção que orientou a sua criação, mas foi responsável pelos contatos internacionais do CV. Dois de seus líderes estão há mais de uma década recolhidos em presídios federais: Luiz Fernando da Costa (Fernandinho Beira-Mar), condenado a mais de 300 anos; e Márcio dos Santos Nepomuceno (Marcinho VP), sentenciado a 48 anos de reclusão.
O Terceiro Comando Puro – TCP surgiu no conjunto de favelas da Maré no Rio de Janeiro em 2002, a partir de dissidência do Terceiro Comando — que, anteriormente, havia se separado do Comando Vermelho. O TCP entrou em acordo com as milícias em diversas comunidades, alugando territórios ou dividindo os percentuais arrecadados, e se consolidou como a segunda facção mais poderosa do RJ. Com a aliança, o TCP passou explorar mercados ilegais típicos das milícias, tais como cobrança de taxa de segurança, transporte clandestino, venda de gás, venda ilegal de serviços de TV a cabo etc.
A facção Amigo dos Amigos – ADA surgiu dentro dos presídios do Rio, entre 1994 e 1998, a partir de uma separação do Comando Vermelho. Originalmente, o grupo não enfrentava o Comando Vermelho ou Terceiro Comando, funcionando como intermediários junto a funcionários públicos do Estado do Rio de Janeiro. De todas as facções, a ADA é a que tem maior proximidade com o Estado a partir de uma relação promíscua com as forças de segurança pública (polícia civil e polícia militar).
A despeito da profícua e recorrente situação social e política que permitiu a criação de organizações criminosas no Rio de Janeiro, atualmente a maior facção do Brasil está sediada em São Paulo, com tentáculos por todo o Brasil e no exterior: o Primeiro Comando da Capital – PCC.
No passado mítico que criou para si, o PCC reivindicou o papel de consequência natural e vingança em relação a pior chacina da história das prisões brasileiras: o massacre do Carandiru, ocorrido em 2 de outubro de 1992, quando policiais militares executaram a tiros 111 detentos. Menos de um ano depois, em 31 de agosto de 1993, um grupo de presos da Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté, o Piranhão, reuniu-se para formar o PCC, como uma fraternidade de “irmãos do crime” que são unidos por um ritual que imita o das máfias italianas.
A partir de então, o histórico do PCC foi de confronto com o Governo de São Paulo. Um dos primeiros exemplos foi a sangrenta rebelião de 17 de dezembro de 2000, que ocasionou a transferência das lideranças do PCC para outros presídios. Em resposta, o PCC utilizou telefones celulares e centrais telefônicas operadas por mulheres de detentos, para organizar uma ainda maior rebelião em 25 penitenciárias paulistas. A massa carcerária passou a respeitar a facção e possibilitou que se espalhasse por todos os presídios de São Paulo e ganhasse simpatizantes em outros Estados.
A partir de 2003, estima-se que o PCC passou a dominar quase todos os presídios paulistas, fazendo desaparecer as rebeliões. O PCC adotou o mesmo princípio inicial do Comando Vermelho: proteção dos presos enquanto classe. Exemplo disso é que o PCC financia até hoje advogados para os seus associados presos a serviço do grupo (chamada de Sintonia dos Gravatas) e, quando algum associado morre em conflito com a polícia, a facção paga pensão alimentícia à família do falecido. Em 14 de março de 2003, o PCC resolveu assassinar o juiz-corregedor dos Presídios da Região Oeste, Antônio José Machado Dias. O Ministério Público paulista apurou que os executores do crime recebem até hoje uma espécie de “pensão vitalícia” do PCC, como forma de pagamento pelo assassinato do magistrado.
Em recente divulgação, soube-se que o PCC mantém arquivo com o nome e endereço de mais de 2 mil agentes públicos no Brasil (13), tais como juízes, promotores, delegados, policiais etc., todos tidos como inimigos mortais da facção. Alguns dos integrantes dessa lista receberiam ameaças de morte em decorrência da permanência das lideranças em presídios federais.
Foi nesse período do começo do século XXI que o PCC, até então explorador do roubo como principal atividade, voltou-se para o tráfico de drogas. Segundo Marinho et. al. (12), o PCC desenvolveu mecanismos de controle social sobre o território conquistado que produziram drástica redução do uso da violência física nos conflitos interpessoais, com os chamados “tribunais do crime”, uma imitação de julgamento conduzido pelos criminosos, que podem resultar em diversas punições, inclusive morte.
Atualmente, o PCC atua em moldes empresariais. Com mais de onze mil membros em grande parte do Brasil e com receita mensal multimilionária, o PCC expandiu sua carteira criminosa para incluir operações internacionais de tráfico de drogas em larga escala e desenvolvendo laços com a máfia italiana ‘Ndrangheta (14).
As atividades do PCC no tráfico de drogas significou o aumento de suas atividades em outros estados da federação brasileira, em disputa pelas principais rotas de escoamento da mercadoria, e o desenvolvimento de atividades em outros países vizinhos, produtores principalmente da cocaína. O CV fez o mesmo movimento expansionista para o Norte/Nordeste do país por volta de 2008, em decorrência dos prejuízos que enfrentava com a instalação das Unidades de Polícia Pacificadora – UPPs nas favelas do Rio de Janeiro, que prejudicou a venda de drogas.
No Norte, o foco do crime organizado é a disputa sobre as labirínticas rotas de escoamento fluvial de drogas oriundas de Peru e Colômbia, especialmente a Rota do Rio Solimões (ou Trapézio Amazônico),formada pelos Rios Negro, Japurá e Iça. Responsável pelo escoamento de aproximadamente 300 toneladas de cocaína por ano, a região é altamente cobiçada pelo crime organizado desde os anos de 1980. Uma vez nos rios nacionais a partir da tríplice fronteira (Tabatinga, Letícia e Santa Rosa) a droga toma direção a Manaus e, depois, para outros locais do Norte, Centro-Oeste e Nordeste, além do envio internacional para Venezuela, Suriname e Guiana. No Nordeste, os principais destinos da droga advinda de Manaus são os portos situados nas capitais de Ceará, Rio Grande do Norte e Pernambuco.
A expansão do PCC em direção ao Norte e Nordeste do país, precipitou o surgimento da terceira maior organização criminosa do Brasil, a Família do Norte. Fundada em 2006 no sistema prisional do Amazonas, a FDN mantém a hegemonia sobre a Rota do Rio Solimões e atua, por vezes, em parceria com o CV para frear, com extrema violência, a expansão do PCC sobre a lucrativa rota de escoamento da droga.
O que se sabe atualmente da FDN vem principalmente dos documentos da Operação La Muralla (15), deflagrada pelo Ministério Público Federal e a Polícia Federal em novembro de 2015, contra os membros da FDN, fornecedores e transportadores de drogas localizados na tríplice fronteira, intermediários utilizados para ocultar e dissimular a transferência dos valores financeiros oriundos do tráfico, familiares dos membros da FDN ou dos fornecedores de drogas, e advogados (núcleo jurídico).
Em outra região do Brasil, o Centro-Oeste, o PCC promoveu uma expansão em direção ao Paraguai e à Bolívia passando a negociar diretamente com os criminosos daqueles países armas, drogas e insumos, a partir de 2008. A região formada pelo interior paulista, Triângulo Mineiro e sul goiano é nevrálgica para o narcotráfico internacional. Descrita por Allan de Abreu (16) como a Rota Caipira, ela é ponto estratégico no mapa logístico dos traficantes, pois caminho entre os países produtores da droga (Colômbia, Bolívia, Peru e Paraguai) de um lado, e os grandes centros de consumo, como São Paulo e Rio de Janeiro, de outro. De São Paulo, via aeroporto de Guarulhos ou porto de Santo, parte importante parte da droga é remetida para o exterior.
Há basicamente três modos de transporte via Rota Caipira. Além dos aviões que, vindos da Bolívia ou Paraguai, vão do Centro-Oeste até o interior de São Paulo, há aqueles que saem do estado de São Paulo com plano de voo até Cáceres, Corumbá ou Ponta Porã, na região de fronteira. Próximo ao destino, porém, desviam para o território paraguaio ou boliviano, se abastecem com a droga e regressam ao Brasil. Outro método utiliza rota contrária: as aeronaves saem da Bolívia ou do Paraguai, arremessam o entorpecente em Mato Grosso ou Mato Grosso do Sul e retornam. A cocaína é embarcada em caminhões e levada para o interior paulista (16).
As facções nacionais desempenham um papel importante no panorama do crime organizado nacional, mas isso não significa que elas sejam hegemônicas em todas as localidades. Mesmo em estados dominados pelas poderosas facções nacionais, há espaço para o surgimento de facções locais, tais como a Sindicato do Crime no Rio Grande do Norte, Guardiões do Estado no Ceará, Bonde dos Cachorros em Pernambuco, Bala da Cara no Rio Grande do Sul etc.
Mesmo em pequenos estados da federação representam oportunidades de infiltração do crime organizado em atividades ilícitas. Na Paraíba, por exemplo, são facções a Okaida e Estados Unidos.
O mapa das facções criminosas no País, elaborado pelo GAECO do Ministério Público de São Paulo e citado por Marinho et. al. (12), mostra que o PCC é aliado de 34 organizações criminosas no Brasil e inimigo de outros 21 grupos.
Milícias
O segundo tipo de organização criminosa nacional, particulariza-se pelo fato de ser composta, ao menos no início, por agentes do Estado, principalmente policiais militares, policiais civis, agentes penitenciários, bombeiros militares e soldados do exército.
Em comum com as facções, as milícias têm por objetivo de dominar determinado território, extorquir seus moradores e dominar as principais atividades lícitas e ilícitas da comunidade. Diferentemente das facções, as milícias receberam dos governantes do Rio de Janeiro um viés de legitimidade, ao menos nos momentos inicias de seu surgimento. Um dos grupos milicianos mais fortes naquele estado é o Escritório do Crime.
Milicianos tomaram para si os territórios das facções e políticos fluminenses, no início dos anos 2000, elogiaram publicamente o movimento e o incentivavam, chegando a destinar recursos públicos a centros comunitários controlados por milicianos e dando legenda partidária para que eles se candidatassem. Na imprensa era comum ler reportagens positivas sobre esse agrupamento que, supostamente, impedia ou expulsava o tráfico de drogas em diversas áreas do Rio de Janeiro (12).
A imagem algo romântica, algo cínica, das Orcrims milicianas foi se alterando na opinião pública a partir de maio de 2008, quando dois jornalistas do jornal O Dia, que realizavam matéria sobre os grupos na comunidade do Batan, foram brutalmente torturados. Naquele ano foi instaurada na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar o fenômeno miliciano. Ao final dos trabalhos, foram apontados 226 membros de milícias: 8 policiais civis, 67 policiais militares, 3 bombeiros militares, 2 agentes penitenciários, 2 militares das Forças Armadas, 5 militares de órgãos não-identificados e 130 não-policiais ou policiais militares, além de 2 Deputados Estaduais e 7 Vereadores do RJ.
As milícias nada mais são do que a continuidade das atividades dos grupos de extermínio que atuavam na Baixada Fluminense entre as décadas de 1970 e 1980 no ramo do assassinato por encomenda (12). O elemento que unifica milícia e grupos de extermínio, dentre outras características, é o fato de seus integrantes serem o Estado em sua face ilegal. O discurso legitimador das milícias é de que “bandido bom é bandido morto” (sendo bandido apenas o afiliado de outra organização criminosa, facção) e que “milícia protege” (do bandido e dela mesma). Nesse sentido, não é por acaso que a milícia se instala em áreas com pouca oferta de serviços públicos e se alia a políticos, pois não convém que o Estado se faça presente em territórios dominados.
Em comum com os grupos de extermínios, as milícias têm as características de estabelecer limites territoriais, uso da força, execução sumária de qualquer pessoa que se contraponha aos seus negócios e, principalmente, ter em seus quadros agentes públicos, o que os torna quase intocáveis. Um ponto distintivo entre os antigos grupos de extermínio e as atuais milícias é a ampliação dos mercados criminais explorados (12).
Como qualquer organização criminosa, as milícias buscam objetivos financeiros através do controle violento de várias atividades legais e ilegais: o controle de transporte clandestino (por meio de vans), venda de combustível adulterado, serviço clandestino de TV a cabo (“gatonet”), venda de gás, taxa de segurança, invasão e comercialização de imóveis etc.
O fato de a milícia ser composta por agentes do próprio Estado também lhe garante informações privilegiadas, usadas para expandir seus negócios ou se evadir e prevenir das atuações estatais. Essas atividades econômicas bem-sucedidas servem de base para a infiltração de membros das organizações criminosas na política, muito mais palatável para as comunidades do que os traficantes das facções.
Crime Organizado da Elite Política
As mais tradicionais organizações criminosas brasileiras são aquelas montadas em todas as esferas da administração pelas elites políticas com vistas ao desvio de recursos públicos. A intersecção entre política, crime e corrupção é marca triste da história nacional.
Na história nacional não são difíceis de elencar casos em que gestores de recursos públicos – desde um pequeno setor de prefeitura até altos escalões da administração pública federal – instalam dentro das repartições públicas grupos com todas as características de organização criminosa.
O crime organizado endógeno não é um tipo diferente de crime organizado. Valendo-se das categorias apresentadas (1), as organizações endógenas verificadas na experiência são estruturas hierarquizadas que se voltam a crimes financeiros, crimes tributários, crimes contra a administração pública, evasão de divisas e lavagem de capitais. Elas empregam a violência psicológica, como regra, mas não dispensam completamente o recurso à violência. Se existir outros agentes públicos que não façam parte da organização endógena, esta pode empregar o mecanismo da corrupção para atingir seus objetivos.
Nessa forma de crime organizado da elite política, a atividade é racionalmente planejada e ordenada, caracterizando-se pela divisão de tarefas dentro da burocracia estatal. Os grupos são normalmente hierarquizados, tendo como líder o mais alto servidor público ou agente político envolvido no esquema. O objetivo da Orcrim é explorar o mercado ilícito do desvio de recursos públicos — destacando-se que aqui a corrupção não é somente ferramenta para manutenção da atividade criminosa principal, mas a própria atividade criminosa principal.
Enquadram-se nessa categoria, por exemplo, o Prefeito de município, em conjunto com o Secretário de Finanças ou tesoureiro, que nomeia comissão de licitação de comparsas, para a realização de licitações fraudulentas em favor de determinadas empresas (cujos administradores também aderem ao esquema ilícito), com objetivo final de executar obras públicas em qualidade e quantidade abaixo do descrito no projeto, possibilitando a reiterada apropriação de recursos públicos. O líder dessa Orcrim representa a elite política daquela municipalidade, dirige e se beneficia com os crimes praticados. Os participantes dessa Orcrim representam servidores públicos que executam tarefas determinadas pelo líder e a ele obedecem. Aqueles que se opõem à Orcrim (digamos um vereador de oposição ou um empresário honesto) são intimidados pelos membros da empreitada (às vezes, com instrumentos da própria burocracia estatal, como proibição de contratar com aquele município) ou corrompidos. Ao final, se nenhum desses métodos funcionar, a Orcrim da elite política, normalmente detentora do poder de mando efetivo sobre forças de segurança pública, lança mão da violência física.
O quadro pintado para o município hipotético acima ocorre em todos os níveis da administração pública, direta e indireta, do Brasil. Possivelmente, não há um órgão público no Brasil que não tenha abrigado, em algum momento, uma organização criminosa da elite política.
A investigação da Operação Lava Jato foi emblemático no sentido de expor a corrupção explorada por organizações criminosas no seio de diversas administrações públicas. Segundo dados do MPF (17), a Lava Jato teve início em março de 2014 na Justiça Federal em Curitiba, com a identificação de organizações criminosas de agentes públicos para desvio de recursos da Petrobrás. Por causa da complexidade do esquema, políticos e econômicos, novas frentes de investigação foram abertas em vários estados como Rio de Janeiro, São Paulo e no Distrito Federal. Também resultou na instauração de inquéritos criminais junto ao Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça para apurar fatos atribuídos a pessoas com prerrogativa de função.
O caso mais emblemático de organização criminosa da elite política ocorreu no braço remetido ao Rio de Janeiro em outubro de 2015, visando apurar os crimes nos contratos para a construção da Usina Nuclear Angra 3. Com o aprofundamento das investigações, constatou-se que o esquema era mais amplo, envolvendo crimes de corrupção, desvio de verbas e fraudes em licitações e contratos na Eletronuclear, subsidiária da Eletrobrás.
Em 17 de novembro de 2016, com a deflagração da Operação Calicute, a Força-Tarefa da Lava Jato no Rio de Janeiro abriu um novo capítulo na investigação dos grandes casos de corrupção no estado, com a prisão do ex-governador Sérgio Cabral, apontado como chefe de uma complexa organização criminosa que desviou recursos de praticamente todas as obras públicas realizadas durante seu governo. A partir daí, foram desarticulados esquemas de corrupção na Secretaria da Casa Civil, Secretaria de Obras, Secretaria de Saúde, Secretaria de Administração Penitenciária e Secretaria de Transporte do estado do Rio de Janeiro, além de desvios em obras da Prefeitura do Rio de Janeiro, bem como a compra de votos para que o Rio sediasse as Olimpíadas de 2017 e uma grande rede internacional de lavagem de dinheiro envolvendo 47 doleiros.
As organizações criminosas da elite política no Rio de Janeiro eram tão poderosas que as investigações levaram à prisão ou afastamento de seis governadores em apenas 4 anos, todos em decorrência de investigações do braço fluminense da Operação Lava Jato.
- Disponível em: https://investigacaofinanceira.com.br/submundo-dos-mercados-financeiros-iii-crime-organizado/;
- A plataforma com os dados pode ser acessada em https://ocindex.net/. O relatório encontra-se em https://globalinitiative.net/analysis/ocindex-2021/;
- https://insightcrime.org/brazil-organized-crime-news/brazil-profile/;
- Disponível em: https://www.unodc.org/unodc/data-and-analysis/world-drug-report-2022.html;
- https://istoe.com.br/mpf-denuncia-maior-traficante-de-animais-silvestres-por-lavagem-de-dinheiro-2/; https://www.mpf.mp.br/pb/sala-de-imprensa/noticias-pb/a-pedido-do-mpf-em-patos-pb-justica-expede-mandados-de-conducao-coercitiva-e-busca-e-apreensao-contra-maior-traficante-de-animais-do-brasil; https://www.mpf.mp.br/pb/sala-de-imprensa/noticias-pb/apos-denuncia-do-mpf-maior-traficante-de-animais-do-brasil-e-condenado-a-12-anos-de-reclusao; https://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/2020/03/04/trf5-certifica-transito-em-julgado-em-condenacao-de-paraibano-maior-traficante-de-animais.ghtml;
- Disponível em: https://www.transparency.org/en/cpi/2021;
- https://comunidade.transparenciainternacional.org.br/retrospectiva-brasil-2021; https://comunidade.transparenciainternacional.org.br/retrospectiva-brasil-2020; https://comunidade.transparenciainternacional.org.br/retrospectiva-brasil-2019;
- A investigação e a persecução penal da corrupção e dos delitos econômicos: uma pesquisa empírica no sistema de justiça federal: Tomo I / Arthur Trindade Maranhão Costa, Bruno Amaral Machado, Cristina Zackseski (organizadores). Brasília: ESMPU, 2016;
- DANTAS, Joama Cristina Almeida. Organizações Criminosas e Corrupção Administrativa: a Expressão do Crime Organizado Endógeno (Um Estudo de Caso no Município de Itaporanga, Estado da Paraíba), dissertação de mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação do Centro de Ciências Jurídicas da UFPB, 2013, p. 13/14;
- Idem, p. 91;
- Idem, p. 100;
- Marinho, Glaucia. Azevedo, Lena. Carvalho, Sandra. Jozino, Josmar. Salvadori, Fausto. Democracia e crime organizado: os poderes fáticos das organizações criminosas e sua relação com o Estado, Fundação Heinrich, Rio de Janeiro, 2019, disponível em: https://br.boell.org/pt-br/2019/12/04/democracia-e-crime-organizado-os-poderes-faticos-das-organizacoes-criminosas-e-sua);
- https://noticias.uol.com.br/colunas/josmar-jozino/2022/11/13/pcc-tem-arquivo-com-nomes-e-enderecos-de-1800-agentes-publicos-no-brasil.htm;
- https://insightcrime.org/investigations/cocaine-brokers-ndrangheta-south-america/ e https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/05/14/mpf-constitui-equipe-para-investigar-ligacao-entre-pcc-e-mafia-italiana.htm;
- https://www.mpf.mp.br/am/projetos-especiais/memorial/atuacoes-de-destaque/operacao-la-muralla;
- de Abreu, Allan. Cocaína: A rota caipira (p. 15). Record. Edição do Kindle;
- https://www.mpf.mp.br/grandes-casos/lava-jato;